Extensão

'As pessoas não tentam mais resolver suas frustrações', afirma Ernesto Venturini

Psiquiatra italiano, um dos especialistas mais influentes do movimento antimanicomial, vai ministrar conferência no Dia Mundial da Saúde Mental

Ernesto Venturini:
Ernesto Venturini: pessoas que buscam soluções fáceis estão mais sujeitas ao sofrimentoRaíssa Cesar / UFMG

Nesta terça-feira, 10 de outubro, Dia Mundial da Saúde Mental, a UFMG recebe um dos principais especialistas no assunto, o psiquiatra e professor Ernesto Venturini, da Università degli Studi dela Repubblica di San Marino. Ele vai ministrar, em português, a conferência A saúde mental em tempos de cólera: primeiramente… A atividade será realizada no auditório da Reitoria, campus Pampulha, a partir das 14h.

O Portal UFMG conversou com o psiquiatra sobre o crescimento da incidência de sofrimento mental no mundo, que alcança cerca de 700 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ernesto Venturini foi um dos principais colaboradores de Franco Basaglia no movimento conhecido como Psiquiatria Democrática Italiana, que lutou pelo fechamento progressivo dos manicômios na Itália e pela reformulação da assistência em saúde mental, exercendo grande influência sobre a luta antimanicomial brasileira. 

Venturini participa e acompanha a construção das políticas de saúde mental no Brasil, na África e na Europa, operando em uma perspectiva transdisciplinar. Ele também representa a Fundação Franca e Franco Basaglia, de Veneza, e já publicou diversos livros sobre saúde mental.

Na entrevista a seguir, o psiquiatra afirma que a sociedade consumista deve ser responsabilizada pelo sofrimento dos indivíduos, critica a incapacidade das pessoas de lidar com as próprias frustrações, aspecto potencializado pelo fenômeno das redes sociais, e propõe que a saúde mental seja encarada como um processo coletivo, "em que o problema do outro também seja visto como seu problema".   

Quando se fala em saúde mental, a maioria das pessoas pensa em depressão, ansiedade e outros transtornos tão comuns nos dias de hoje. Por que essa relação não é direta?
Na maioria das vezes, a saúde mental está relacionada à psiquiatria e a doenças. Na realidade, o conceito de saúde mental é mais abrangente e amplo. Não se trata apenas de doenças mentais, mas, sim, do bem-estar e do equilíbrio das pessoas com o ambiente onde elas estão inseridas. 

Na vida das pessoas há momentos de estresse, de saúde e de falta de saúde. Isso é comum, e todo mundo experimenta problemas ou dificuldades. Portanto, nem sempre o sofrimento deve ser rapidamente relacionado a uma doença mental. As situações de estresse e de sofrimento são inerentes à vida e podem evoluir positivamente ou negativamente. Elas evoluem positivamente quando se transformam em experiência que faz o indivíduo crescer. E evoluem negativamente quando se transformam em uma doença, como a depressão.

Como o ambiente social em que vivemos hoje favorece o aparecimento do sofrimento mental?
A sociedade é diretamente responsável pelo sofrimento mental de seus indivíduos. O atual sistema de mercado e a sociedade consumista em que vivemos interferem na nossa consciência, determinando uma mutação antropológica. Somos doutrinados para sermos consumidores. Os valores éticos mudaram e, consequentemente, mudou também a forma de entender os problemas do outro. Isso tudo interfere no modo de enfrentar as dificuldades. Estamos nos tornando mais frustrados. 

Como a capacidade de enfrentar problemas foi afetada?
A sociedade do consumo modifica nossa capacidade psicológica de enfrentar os problemas, e isso aumenta o risco de doenças mentais. Uma sociedade que prega apenas o sucesso e não reconhece o fracasso deixa os indivíduos menos preparados para enfrentar dificuldades. Antes, se a pessoa tinha dificuldades para dormir, ela conversava com seus familiares e amigos, buscando uma solução criativa para esse problema. Hoje, busca uma solução mais fácil, comparecendo ao médico e tomando remédios para dormir. A medicalização da nossa sociedade, que vai ao encontro dos interesses das multinacionais de fármacos, fortalece a incapacidade de a pessoa enfrentar os problemas da sua vida e o seu sofrimento. As pessoas não tentam mais resolver as suas frustrações. Na sociedade do consumo e do sucesso, tudo tem um valor monetizado.

Psiquiatra
Segundo o psiquiatra, situações de estresse podem evoluir positiva ou negativamenteRaíssa César / UFMG

As redes sociais e as novas tecnologias também têm responsabilidade no aumento do sofrimento mental?

Sim. Nossa psicologia e nosso cérebro são plásticos e se modificam, sendo influenciados pelo meio. A bolha da internet lhe oferece apenas o que você quer, o que lhe interessa. Dessa forma, as pessoas diminuem a capacidade dialética, que era a principal arma para enfrentar o sofrimento mental. Não existe uma receita mágica para manter a saúde mental, mas pessoas que buscam soluções fáceis para os problemas e frustrações estão mais suscetíveis a esse sofrimento.

O senhor participa e acompanha a construção das políticas de saúde mental no Brasil e em outros países do mundo. Falando especificamente do nosso país, em que estágio estamos em relação ao modo como lidamos com a saúde mental?
No mundo globalizado já não existe autonomia dos países, e o que um país faz acaba inspirando os outros. Nos últimos anos, a OMS passou a ver o Brasil como um país que tem se posicionado positivamente sobre a questão da saúde mental. O primeiro passo para lidar bem com o problema seria um sistema público de saúde que atendesse a todos. Quando esse sistema funciona, a qualidade de vida das pessoas aumenta, e isso diminui o sofrimento mental.

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem papel importante nesse processo, mas aqui o problema ocorre devido à dimensão territorial e ao grande número de habitantes, fatores que impedem que todos tenham acesso a ele. No Brasil, o trabalho de Organizações Não Governamentais (ONGs) também é importante, visto que elas atuam como instrumentos de luta contra o sofrimento mental.  

Como a sociedade pode contribuir para reduzir o sofrimento mental?
Não existe uma solução simples para proteção da saúde mental, mas precisamos ver esse problema como algo que não é individual, é da sociedade, que precisa pressionar os políticos para que assumam a responsabilidade. É um percurso subjetivo e coletivo. Quando falamos de corpo físico, as pessoas sabem que devem cuidar da saúde, não comer alimentos que façam mal e praticar exercícios. Com a saúde mental é a mesma coisa, as pessoas já sabem o que faz bem e o que faz mal. A criação e a manutenção de laços afetivos e a preocupação com o outro são algumas das práticas para manter a saúde mental. As pessoas, quando trocam experiências, se ajudam. É preciso olhar para o outro e ver a saúde mental como um processo construído coletivamente. O problema do outro é também o seu problema.

Luana Macieira