Arte e Cultura

Antropólogos indígenas propõem descolonização do pensamento para combater epistemicídio

Célia Xakriabá e Edgar Kanaykõ abordaram a luta de seu povo pelo 'território do conhecimento’ em conversa no Festival de Inverno

A luta pela retomada da terra sempre foi central na vida dos povos indígenas. Nos últimos tempos, esse processo também se estendeu para outros territórios e alcançou o ambiente acadêmico. “Não é somente a retomada da terra, há também uma disputa pelo território do pensar, do falar, do narrar, do conhecimento, da política”, destacou Celia Xakriabá, doutoranda em Antropologia na UFMG, que participou da roda de conversa Epistemicídio, realizada na última quinta-feira, 29, no âmbito da programação do 53º Festival de Inverno UFMG.

Além de Célia, o bate-papo reuniu o fotógrafo indígena Edgar Kanaykõ Xakriabá e foi mediado pela professora e escritora Luana Tolentino, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG. A íntegra da conversa, traduzida para Libras, está disponível no canal Cultura UFMG no YouTube, a partir de 1’40’’49’’’.

Em sua exposição, Célia, que é mestra em desenvolvimento sustentável pela UnB, assessora parlamentar, professora e militante do movimento indígena brasileiro, contou que os primeiros doutores indígenas não estavam na universidade, mas na comunidade Xakriabá. Eram as parteiras, as benzedeiras e as rezadeiras. “O primeiro livro que li foi o meu avô. Ele fala que conhecimento precisa de ‘assuntamento’ e que é preciso tomar cuidado, porque na universidade todo mundo pode ser inteligente, mas nem todo mundo adquire a sabedoria, porque a sabedoria se adquire pisando firme no chão do território”, avaliou.

Sobre o epistemicídio – expressão associada ao processo de exclusão e de silenciamento de formas tradicionais e não acadêmicas de saber –, Célia Xakriabá foi enfática. “Na universidade, nós não somos vítimas da bala de fogo, mas somos vítimas da bala que tenta negar a nossa identidade e o nosso modo de conhecimento em uma matança da nossa identidade. Somos mortos quando nos tiram o nosso território e o nosso território do pensar”, disse a doutoranda.

Célia Xacriabá durante roda de conversa
Célia Xakriabá: "nossos antepassados foram ignorados quando alertaram sobre as mudanças climáticas"Reprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

Para ela, a primeira fake news da história surgiu em dia 22 de abril de 1500, com a "descoberta" do Brasil por Pedro Álvares Cabral em uma época em que o seu território era habitado por mais de cinco milhões de indígenas. Célia também defendeu a necessidade de ouvir os povos indígenas e outros agentes do saber. “Nossos antepassados já falavam há muito tempo sobre as mudanças climáticas e foram ignorados. Foi preciso que a ciência da universidade dissesse isso”, lembrou ela, que pregou a descolonização do pensamento. “Quando transitamos dentro da universidade, nós carregamos o território dentro de nós. A intelectualidade não está em um único lugar, ela está na cabeça, na mão, no nosso útero; nós, mulheres, escrevemos com nosso útero, e, nós, povos indígenas, escrevemos principalmente com os pés, a partir da história do caminhar coletivo”, destacou. “É urgente pensar a descolonização contra a monocultura das mentes e do enxergar, porque toda monocultura mata, inclusive a do pensamento", sustentou.

Novo arco e flecha
O fotógrafo Edgar Kanaykõ Xakriabá trouxe referências imagéticas para ressaltar a importância da memória e da resistência indígenas. “Nesse mundo tecnológico, as transmissões on-line são como uma fogueira fria, e, aos poucos, nós vamos aquecendo-a com nossos saberes”, metaforizou Edgar, que é mestre em Antropologia, com dissertação no campo da etnofotografia, e graduado pela Formação Intercultural para Educadores Indígenas da UFMG.

Edgar analisou o imaginário construído em torno da presença indígena na sociedade. “As pessoas ainda estranham quando veem o indígena fora desse espaço que a sociedade lhe reservou, o do índio com arco e flecha."

Premiado, Edgar usa as lentes de sua câmera como “ferramenta” de luta, o que torna possível lançar novos olhares sobre a vida indígena. “A câmera fotográfica é o nosso novo arco e flecha. Graças à imagem, podemos contar nossa história, que sempre foi contada do ponto de vista do branco. Isso gera equívocos e estereótipos que matam vários saberes, pois somos vários povos. A fotografia, o audiovisual, os meios tecnológicos também são usados pelos indígenas como formas de transmissão de saberes”, reforçou.

Edgar Kanaykõ Xakriabá recorre à fotografia para valorizar a memória e reforçar a luta do seu povo
Edgar Kanaykõ Xakriabá recorre à fotografia para valorizar a memória e reforçar a luta do seu povo Reprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

Gabriela Augustha Andrade