Opinião

[Opinião] Como escolher um médico em tempos de coronavírus

Marcelo Galuppo, da Faculdade de Direito, avalia que decisão deve ser pautada pela competência técnica e atuação sustentada em evidências científicas

Profissional de saúde observa paciente em UTI em hospital no Pará
Profissional de saúde observa paciente em UTI em hospital no Pará: médicos precisam reunir conhecimento e habilidade para identificar a doença e encontrar caminhos para a sua curaAlex Ribeiro | Fotos Públicas / CC BY-NC 2.0

Perguntaram recentemente ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, se ele tomaria cloroquina se seu médico lhe prescrevesse como tratamento para a covid-19. Ele declarou: “Quando se fala de protocolo de tratamento com cloroquina, ivermectina, há médicos que receitam isso. Outro dia me perguntaram: 'Se você contrair covid-19, você vai tomar isso?' Eu vou tomar só se o médico me receitar”.

Segundo estudo da Associação Médica Brasileira, cujos parâmetros metodológicos não foram divulgados, 34,7% dos médicos entrevistados prescreveriam cloroquina, e 41,4% prescreveriam ivermectina para tratamento da infecção. É uma parcela muito grande dos médicos brasileiros, o que poderia indicar que a classe está dividida (argumento implícito nas frequentes manifestações de outra autoridade brasileira). Diante disso, há uma pergunta feita desde a Antiguidade e que parece ainda atual: se você adoecer, como escolherá o médico que o tratará?

Suponha que seu problema não seja escolher um médico, mas um motorista para seu carro. É muito provável que você o leve para conduzi-lo pelas ruas que você geralmente percorre, que lhe peça para estacionar o carro, que se certifique de que ele é atento e demonstra ser prudente no trânsito. É claro que isso não é suficiente; é provável que você também queira receber referências de outros empregadores para decidir-se por contratá-lo ou não, mas avaliar sua maneira de conduzir é parte importante, se não a decisiva, no processo de escolher e contratar um motorista. Isso pode nos levar a pensar que nossas opiniões são suficientes para escolhermos entre dois profissionais. Mas suponha que você deva escolher não um motorista para seu carro, mas um piloto para seu avião. E suponha que você não saiba como pilotar um avião. Você será capaz de escolher por si mesmo o melhor piloto de avião?

Só escolhemos bem naqueles campos que conhecemos. A diferença entre escolher um motorista para seu carro e o piloto para seu avião é que você provavelmente sabe como conduzir um carro com segurança e, por isso, pode avaliar a competência técnica do motorista. Por exemplo, eu sei que, se o motorista, sob uma condição de estresse, se esquece de pisar na embreagem antes de trocar de marcha, ele não será um bom motorista (ou porque não domina a técnica de conduzir um veículo, ou porque, sob pressão, ele não a utiliza). Mas, no caso do piloto, será que eu tenho como avaliar se ele deveria ter apertado o botãozinho verde antes de puxar a alavanca amarela?

Essa questão foi abordada por Aristóteles em um de seus livros, Ética a Nicômaco. Será que qualquer pessoa pode escolher um flautista para integrar uma orquestra profissional? Provavelmente não. Posso avaliar se o som produzido parece bonito, ou se gosto da música, mas não posso avaliar o grau de dificuldade de execução da peça para aferir sua competência (ele poderia escolher uma peça simples, mas impressionante por sua sonoridade ou familiaridade, e seria escolhido em detrimento de um flautista que, por exemplo, escolhesse tocar Densidade 21,5, de Varèse). Apenas músicos podem avaliar apropriadamente a qualidade técnica de outros músicos. Posso achar bonito o que um músico toca e não gostar do que outro toca, mas isso, provavelmente, diz mais sobre mim mesmo do que sobre o músico. Como, então, escolher um médico?

Somente um bom médico pode dizer quem também é bom nesse ofício, assim como apenas quem sabe pilotar aviões pode avaliar um piloto e somente um flautista é capaz de indicar outro flautista. É claro que ser competente do ponto de vista clínico talvez não seja o único critério para escolher um médico. É preciso que ele seja disponível – e é preferível que também seja simpático. Mas não nos guiamos primariamente por esses critérios para escolher médicos – caso contrário, não haveria muita diferença entre escolher um médico, um psicólogo, um padre e até um amigo. Partir deles – e não do critério técnico – pode nos levar a uma má escolha. E todo mundo preferiria o Doutor House a um charlatão simpático, se sua vida estivesse em jogo.

Conhecimento técnico é o critério principal que devemos levar em conta na hora de escolhê-los [os médicos]. O filósofo Platão disse que conhecimento é uma opinião verdadeira e justificada.

Médicos precisam reunir conhecimento técnico e habilidade para identificar a doença e encontrar caminhos para a sua cura. Conhecimento técnico é o critério principal que devemos levar em conta na hora de escolhê-los. O filósofo Platão disse que conhecimento é uma opinião verdadeira e justificada. Suponha que alguém prescreva leite na alimentação para tratar osteoporose, porque acredita que, sendo os ossos “brancos” e o leite também “branco”, eles se fortalecem reciprocamente. A prescrição não se baseia em conhecimento por não ser fundamentada (pois poderia levar alguém a também prescrever gelo para osteoporose, já que ossos e gelo são brancos). Para atestar que alguém detém conhecimento sobre algo, a pessoa precisa demonstrar não apenas que existe um nexo causal entre dois eventos, mas também por que existe esse nexo causal.

Dificilmente, poderíamos avaliar se um médico detém conhecimento e, por isso, precisamos confiar nos próprios médicos quando se trata de escolher um médico para nós. Como nem sempre podemos perguntar a outros médicos se os médicos que escolhemos são competentes, precisamos confiar nas diretrizes que corporações da área emitem sobre o comportamento desses profissionais para avaliá-los. A medicina tem-se baseado cada vez mais em evidências científicas, sobretudo em termos de avaliação da eficácia de determinado tratamento para certa doença. Pesquisas controladas e estudos de revisão possibilitam determinar de modo cada vez mais preciso a eficácia dos tratamentos prescritos. E, como atesta a própria AMB (repetindo pesquisas realizadas em todo o mundo), a cloroquina e a ivermectina não são eficazes no tratamento da covid-19 – sobretudo no caso da primeira, põem em risco real a saúde das pessoas. Nesse caso, opiniões contrárias não são verdadeiras nem fundamentadas. Por isso, são meras opiniões – e não conhecimento.

Para atestar que alguém detém conhecimento sobre algo, a pessoa precisa demonstrar não apenas que existe um nexo causal entre dois eventos, mas também por que existe esse nexo causal.

Minha resposta à pergunta formulada ao senador Rodrigo Pacheco, portanto, teria sido diferente. Se eu pudesse escolher o médico, dificilmente seria um que não se orientasse pela medicina baseada em evidências. Dificilmente, seria um profissional que prescrevesse cloroquina ou ivermectina para covid-19. E, se eu estiver correto, isso significa que o fato de 34,7% dos médicos pensarem em prescrever cloroquina para tratar a infecção não é sinal de que haja uma divergência na área sobre o tratamento a ser empregado, mas apenas que muitos médicos brasileiros não estão bem preparados para o exercício de sua profissão.

Marcelo Campos Galuppo / Professor de Filosofia do Direito na UFMG e na PUC Minas