Institucional

Educação deve ser protagonista no combate à violência, defendem especialistas

Em evento nesta segunda, pesquisadores das áreas do ensino, da criminalidade, do direito e da comunicação indicaram princípios para a construção de uma cultura da paz

Geane Alzamora, Valéria Oliveira, Sandra Goulart e Fernando Jayme compuseram mesa de debate
Geane Alzamora, Valéria Oliveira, Sandra Goulart e Fernando Jayme formaram a mesa de debate Foto: Foca Lisboa | UFMG

O investimento em pesquisas sobre violência nas escolas, encabeçadas pela área da educação, é fundamental para a compreensão do fenômeno e o desenvolvimento de estratégias para conter o crescimento dos ataques observados nos últimos anos. Essa é a percepção da professora da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG Valéria Oliveira, uma das participantes do evento Por uma cultura da paz: combate à violência na educação e à desinformação, realizado na manhã desta segunda-feira, 29 de maio, na Sala de Sessões da Reitoria, campus Pampulha.

Durante o evento, transmitido pelo canal da UFMG no YouTube, a pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) defendeu que é preciso dar protagonismo à educação no acompanhamento dos casos de violência. "Precisamos traçar estratégias para que o registro desses casos seja feito também por profissionais da educação e não apenas pela área de segurança pública. É necessário que se traga a educação para o centro do debate, inclusive na produção de dados e pesquisas para uma melhor compreensão desses fenômenos”, afirmou.

Valéria Oliveira acredita também que é preciso reconhecer o que é de fato violência na escola. “Muitas vezes, é difícil identificar as situações de violência nas escolas, para pensar e propor as intervenções adequadas aos problemas que ocorrem nesses espaços. O primeiro desafio, então, é este: identificar a violência que acontece nas escolas, já que nem toda violência é produzida na instituição, que é também alvo de investidas externas que tomam a comunidade escolar como vítima. Nos casos de ataques, como os que vimos neste ano, há uma mistura desses fenômenos”, afirmou.

Valéria Oliveira: atenção aos eventos cotidianos
Valéria Oliveira: atenção aos eventos cotidianos Foto: Foca Lisboa | UFMG

Pensar no acúmulo de pequenas violências no contexto escolar é fundamental, segundo a pesquisadora do Crisp. Isso exige que se dê voz às vítimas desses eventos. “Para nós, da educação, isso é algo central. Não são raros os casos de agressões decorrentes de situações anteriores de menor gravidade, nas quais não houve administração prévia dos conflitos, pela falta de escuta aos principais alvos dessas violências no passado”, explicou Valéria Oliveira.

A professora da FaE lembrou ainda que a confusão de situações cotidianas de indisciplina com violência tem gerado demandas e abordagens equivocadas, como a presença de policiais nas escolas e o foco em investimento em tecnologias digitais de monitoramento. Essas abordagens podem ser vistas inclusive em dezenas de projetos de lei apresentados neste ano na Câmara dos Deputados. “Um breve olhar sobre esses projetos possibilita observar um protagonismo de congressistas que integram grupos associados a essas violências na proposição de projetos de enfrentamento, quando ocorrem esses episódios nas escolas”, relatou.

Segundo Valéria Oliveira, é necessário “reconhecer os níveis de gravidade das situações para refletir de maneira bem informada sobre as possibilidades de intervenção pedagógica e também as que envolvam a sociedade como um todo”. Entre as ações prioritárias, segundo a pesquisadora, estão a constituição de canais de comunicação para escuta e acolhimento de vítimas e demais envolvidos nas situações de violência nas escolas, o desenho de estratégias abrangentes de registro de casos pela área da educação, o alinhamento conceitual (para distinguir violência física, simbólica, ato infracional, risco de massacre, entre outros termos), a responsabilização de estudantes e demais membros da comunidade escolar por atitudes na escola, a atenção aos princípios de equidade, o foco no aprendizado e não na punição, a revisão da política de acesso a armas de fogo.

A pesquisadora também defende o investimento no monitoramento e na investigação de denúncias da atuação de grupos que estimulam a violência extrema em redes sociais. 

Letramento midiático
Em seguida, em consonância com a abordagem de Valéria Oliveira, a professora Geane Alzamora, do Departamento de Comunicação Social (DCS) da UFMG, que tratou da relação entre os processos de desinformação e a violência nas escolas, reforçou a necessidade de ações, no âmbito escolar, focadas no letramento midiático de estudantes. Para ela, a ausência de um horizonte comum de comunicação prejudica a adesão social às campanhas de combate à desinformação e à violência nas escolas.

"Além disso, nenhuma campanha de comunicação vai alcançar resultado efetivo contra a violência se não levarmos em conta essa dimensão. É fundamental pensar em formas de monitoramento, por meio do letramento midiático e informacional nas escolas, porque a violência que se desdobra nesses ataques é gestada cotidianamente nas escolas”, afirmou.

Geane Alzamora: letramento midiático e informacional
Geane Alzamora: dificuldade de construção de um mundo comumFoto: Foca Lisboa | UFMG

Uma das coordenadoras do Programa UFMG de Formação Cidadã em Defesa da Democracia, Geane Alzamora lembrou que as escolas, em geral, refletem as condições de violência e desigualdade da própria sociedade. Segundo a professora, a polarização política, intensificada pelos processos de desinformação contemporâneos, acirra as contradições sociais e dificulta a construção de um mundo comum. “E essa é uma questão delicada, porque a democracia se faz na escola, como um valor inegociável. É preciso que nós, como Universidade, pensemos em como contribuir nesse sentido”, disse.

Geane Alzamora defende uma abordagem de enfrentamento a violências que enfatize o fomento de habilidades sociotécnicas para o uso crítico e responsável das plataformas midiáticas. Essa visão, segundo a pesquisadora, está em sintonia com o que preconiza a Unesco, por meio do Programa de Fomento do Letramento em Mídia e Informação, de 2019. “Nossos projetos de extensão precisam focar também nessa dimensão. Nossos alunos estão conectados, nos seus celulares, e a escola não pode ser uma exceção ao que ocorre na sociedade”, afirmou.

A professora do DCS também falou sobre o desafio de lidar com as questões legais, em relação às plataformas digitais. Geane Alzamora acredita que é necessário o estabelecimento de parâmetros institucionais, técnicos e jurídicos para delinear possíveis ações em plataformas de mídias sociais e a consequente punição das próprias plataformas e de indivíduos responsáveis pela propagação de ameaças em conexões digitais. “O grande desafio é que, enquanto as plataformas são globais, nossas questões jurídicas são locais. Como lidar com essa dimensão globalizada, se as nossas questões jurídicas são localizadas? Esse é um grande desafio”, refletiu.  

Escola restaurativa
A centralidade da escola na sociedade contemporânea foi tratada pelo professor Fernando Jayme, da Faculdade de Direito, que representa a UFMG no Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais. Coordenador do programa Ciranda –Justiça Restaurativa, Jayme desenvolveu sua fala sob a ótica da justiça restaurativa. “Minha relação com a justiça restaurativa me levou à convicção de que ela é um estilo de vida, um modo de ver o mundo, uma resposta que exige uma profunda transformação e revisão do nosso modo de agir e estar na sociedade, incluindo o nosso modo de nos relacionarmos com o outro”, explicou.

Fernando Jayme: escola restaurativa
Fernando Jayme: centralidade da escolaFoto: Foca Lisboa | UFMG

Para o professor, a escola ocupa hoje uma centralidade ímpar na sociedade e na construção da democracia, por acolher, em seu seio, a diversidade da sociedade. “É por isso que os problemas extramuros acabam se manifestando dentro das nossas escolas. Esse ambiente diverso e plural acaba estimulando um ambiente carregado de conflituosidade”, disse. 

Na visão de Fernando Jayme, “o papel da escola é formar cidadãos preparados para a construção de uma sociedade que se molde ao projeto estipulado pelos constituintes de 1988, uma sociedade que seja justa, pacífica, igualitária e liberta de qualquer tipo de discriminação". Em sua visão, "ainda estamos distantes desse projeto. A escola não tem atendido a esses objetivos. Por isso, é necessária uma mudança de paradigma, para que ela se adapte e se atualize”.

Nesse sentido, para o pesquisador, a justiça restaurativa se apresenta, em contraposição ao punitivismo (“que tem se demonstrado extremamente fracassado”), como uma resposta adequada ao tratamento dos conflitos escolares. “Essa visão, que considera as escolas como instituições em desenvolvimento, vê a justiça restaurativa como um mecanismo continuado a serviço da realização da justiça social em uma comunidade cujos vínculos se entrelaçam em rede, envolvendo escola, família e comunidade extramuros. Assim, a justiça restaurativa, entendida como um conjunto de práticas que possibilitam a atuação emancipada das escolas, é um interessante caminho em direção à construção de uma cultura de paz”, afirmou Jayme.

A escola restaurativa, na concepção do professor da Faculdade de Direito, pressupõe a ressignificação das relações hierárquicas, o estabelecimento de um poder compartilhado, a abertura para o diálogo. “A justiça restaurativa, no contexto escolar, pode contribuir para a formação de uma cidadania ativa e de uma sensação de pertencimento e espírito comunitário, que pode ir além dos muros da escola, contribuindo para a consolidação da democracia”, defendeu.

Ataques simbólicos à educação
Responsável por abrir e mediar o debate, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida reforçou, com base em dados divulgados na semana passada pelo Instituto Sou da Paz, a preocupação da Universidade com o crescimento da violência nas escolas. De acordo com a organização, o Brasil registrou 24 ataques a escolas em 22 anos, e mais da metade deles ocorreu nos últimos quatro anos, período marcado pela ascensão da extrema-direita, por constantes ataques à educação e ameaças às universidades e instituições de ensino superior, em especial as públicas, atingidas, entre outras coisas, por dezenas de cortes orçamentários. 

“São dados que nos preocuparam muito. Indicam, em média, mais de um ataque por ano, o que mostra que há algum fenômeno que precisa ser analisado e conhecido. Não podemos admitir que a educação esteja ligada a esse contexto de violência. Isso não faz parte da natureza do ser humano, da nossa história como nação e também da escola, como instituição. Esse cenário, de fato, nos preocupa, e é importante que façamos essa reflexão”, defendeu.

Em relação à ofensiva contra universidades, em especial contra a UFMG, Sandra Goulart frisou que os ataques vão além do aspecto orçamentário. “Nossa instituição foi muito atacada, inclusive no campo simbólico, em seu papel como instituição de ensino que promove reflexões importantes para a nossa sociedade, como esta realizada aqui, hoje”, afirmou.

Hugo Rafael