Arte e Cultura

Ione de Medeiros: ‘olhar sincrético’ é importante em espetáculo ‘multimeios’

Há 35 anos à frente do Grupo Oficcina Multimédia, diretora teatral abriu a série de conferências desta edição do Festival de Inverno

Ione de Medeiros
Ione de Medeiros falou também sobre sua relação com a trajetória do Festival de Inverno da UFMGFoto: Foca Lisboa / UFMG

“O ‘olhar sincrético’ é a sensibilidade de perceber o que é único, essencial, desprezando a fidelidade aos detalhes. A criança tem esse olhar do todo: ela vai ao essencial, não precisa focar aos detalhes. É uma visão ampla”. Com esse argumento, que retoma a relação que o teórico francês Henri Wallon faz entre o sincretismo e o pensamento infantil, a diretora do Grupo Oficcina Multimédia, Ione de Medeiros, inaugurou, na noite da última segunda-feira, 23, o ciclo de conferências do Festival de Inverno da UFMG.

Com formação também nos campos da música e da literatura, Ione está no grupo desde que ele foi criado, em 1977, durante o 11º Festival de Inverno da UFMG, que foi realizado em Ouro Preto e em Belo Horizonte. Em 1983, a artista assumiu a direção do grupo.

Nesta semana, o Conservatório UFMG já recebeu a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô e ainda recebe, nesta quinta, 26, o ensaísta Nuno Ramos, e na sexta, 27, o músico, compositor e ensaísta José Miguel Wisnik, para conferências na unidade – sempre às 19h. A participação nas conferências, assim como em todas as demais atividades do 50º Festival de Inverno da UFMG, é gratuita. O Conservatório UFMG fica na Avenida Afonso Pena, 1.534, Centro.

Ione
Diretora detalhou aspectos não tradicionais das montagens da Oficcina Multimédia Foto: Foca Lisboa / UFMG

Analítico versus sincrético
Para provocar o público, Ione pediu que cada participante desenhasse rapidamente um animal – sem usar borracha nem qualquer referência imagética que pudesse “facilitar” o trabalho – e, em seguida, projetou os desenhos para a plateia, de forma a poder se valer deles para exemplificar o que seriam as ideias de olhar sincrético e olhar analítico.

“A partir dos oito anos, a criança passa a ter um olhar analítico, racional, que busca descrever a realidade como ela é”, introduziu a diretora. Contudo, disse ela, o olhar sincrético e abstrato – ou seja, a capacidade de focar no essencial – não se perde nesse processo, ainda que a partir dessa idade a visão analítica se torne majoritária.

“Os desenhos que foram produzidos aqui têm essa característica infantil”, explicou, lembrando que, quando nos tornamos adultos, tendemos a acreditar que nossos desenhos só são bons quando se aproximam da realidade. Talvez por isso, explicou, não raro “paramos de desenhar por volta dos dez anos de idade”.

Sincretismo e polifonia
Segundo Ione, ela desenvolve com o grupo Oficcina Multimédia um trabalho que denomina “multimeios”, que combina, na construção dos espetáculos, música, dança, teatro, artes visuais, vídeo e literatura. Para ela, é o olhar sincrético o fator essencial para se mesclar todas essas linguagens. “São muitas vozes diferentes buscando, cada uma, a sua essência, de forma a se poder construir essa linguagem múltipla”, explicou. A diretora detalha o fato de suas montagens não seguirem a dramaturgia tradicional. “Nós não temos histórias com princípio, meio e fim”, lembrou.

Ione
Ione de Medeiros: histórias sem 'princípio, meio e fim'Foto: Foca Lisboa / UFMG

Para Ione, esse olhar sincrético está presente em todo o trabalho da Oficcina Multimédia – a começar pela construção dos cenários, aspecto que foi o mais discutido pela diretora durante a conferência. “Nós construímos cenários que não são figurativos. Não usamos cenários descritivos. Usamos objetos que catamos na rua ou em ferros-velhos, como lataria, rodas de bicicleta, papelão, carrinhos de supermercado; objetos do cotidiano; coisas que estão jogadas por aí. Contudo, revisitamos todos esses materiais. Nós os tiramos de suas funções utilitárias e os inserimos de outras formas. O olhar sincrético, aqui, significa exatamente essa inserção do objeto fora de sua função figurativa”, exemplificou.

A diretora também explicou que os cenários não são construídos posteriormente, para se adaptarem às montagens, mas sim juntamente ao processo de criação dos espetáculos. “Nós nunca começamos uma montagem de forma ao cenário vir depois. Logo no início, os atores vão catar objetos, e muitas vezes será a partir deles que vamos começar a criar um novo espetáculo”, disse.

Ione explicou que, nesse processo, o todo do espetáculo acaba sendo distorcido, deformado, alongado, e sofre procedimentos que o afastam da realidade figurativa que é própria da visão analítica. Contudo, nem por isso ele perde o essencial: apenas passa a demandar um outro tipo de relação por parte do espectador. “Esse procedimento exige um novo olhar por parte do público. [Em uma produção assim, é preciso saber que] você não vai compreender de imediato, mas estará ampliando a sua forma de ver o mundo, com um olhar mais sensível e mais amplo.”

Segundo Ione, o trabalho dos atores também é atravessado por esse sincretismo. “O ator faz muitas coisas [em cena]: dança, se movimenta, fala, emite sons, canta, manipula objetos: em uma encenação multimeios, o olhar sincrético também está presente na função do ator em cena”, disse, explicando que o trabalho do ator não se restringe à tarefa de falar um texto que todos entendam. “Nossos atores são mais intérpretes que personagens”, resumiu, buscando dar a entender como a experiência estética é empregada para a construção de sentidos nos espetáculos.

Ione de Medeiros
Ione de Medeiros em conferência no Conservatório UFMGFoca Lisboa / UFMG

Festival formador
O Grupo Oficcina Multimédia foi fundado durante um curso de arte integrada que foi ministrado pelo músico Rufo Herrera durante o Festival de Inverno de 1977. Na ocasião, Herrera já visava a mescla de várias áreas da arte com vistas à criação de projetos multimeios.

Segundo Ione, além de o grupo ter surgido no Festival, a sua própria formação como artista, pessoal, também se deu no âmbito do evento. “A Oficcina Multimédia foi criada em um curso há 40 anos, mas antes disso eu já participava do Festival de Inverno da UFMG. Nesses 51 anos de Festival, eu me inseri primeiro como aluna, depois como professora, coordenadora, e agora como palestrante. Para mim, é um prazer enorme estar aqui”, disse.

Dalila Coelho