Opinião

Não é só pelos 3,5%

Professor Gustavo Menezes escreve sobre a relevância da universidade e a dedicação de seus 'lutadores e formadores de cidadãos'

Gustavo Menezes e estudantes que integram seu grupo de pesquisa no ICB
Gustavo Menezes e pesquisadores que integram seu grupo de trabalho no ICB Foca Lisboa / UFMG

Na última segunda-feira, 13 de maio, acordei com uma notificação em meu Facebook. O algoritmo de reconhecimento facial da mais famosa rede social do mundo havia identificado meu rosto em uma foto postada por uma pessoa com quem nunca havia me conectado. Não era uma foto minha, especificamente. Não era uma selfie bem pertinho do meu rosto. Era uma foto extraída, de forma amadora, da capa de um jornal de grande circulação em Minas Gerais. Lá, também em baixíssima resolução, havia uma foto minha de corpo quase inteiro; meu rosto ocupava fração mínima da foto. Mas foi o bastante para o tal algoritmo de reconhecimento facial me encontrar entre os 1,74 bilhão de usuários do Facebook.

É inegável, até para os mais resistentes, que as aplicações dessa tecnologia são vastas. Segurança pública, acessibilidade, criptografia de dados em bancos, busca de crianças desaparecidas e, muito provavelmente, diagnóstico de doenças por imagem. Uma “mágica” criada pela ciência e 100% explicada por ela. No entanto, foi triste aparecer na capa do jornal dessa vez. A manchete era sobre o alarmante desmonte do sistema de ensino, ciência e tecnologia do Brasil. As notícias sobre os cortes estão circulando desenfreadamente pela mídia. Embora cada uma se valha de uma matemática particular – 30%, 7,5%, 3,6% ou sua simplificação para “três bombonzinhos e meio” –, houve uma redução significativa nas verbas de manutenção, o que vai causar grandes impactos na gestão das universidades.

O teor e os desdobramentos dessas notícias também assustam. Declarações desencadeiam uma onda de opiniões injustas, parciais e, sobretudo, mentirosas sobre as universidades do Brasil. Amigos, parentes e pessoas que eu, até então, considerava inteligentes aderiram à ideia de que "tem muita palhaçada, muita roubalheira, muita balbúrdia na Universidade. Tem que cortar verba MESMO". Leio comentários, ouço pessoas, e a decepção só aumenta. Há uma divulgação enorme, via redes sociais e WhatsApp, de comportamentos que não representam a qualidade e a importância da UFMG e do sistema de ciência e tecnologia nacional. Isso, que pode parecer inocente (é comum ouvir "eu só estou replicando o que me mandaram"), vai contribuir muito para a destruição de uma das maiores esperanças para o crescimento de uma nação: educação, ciência e tecnologia.

Se você acha que a Universidade é um "antro de bagunça e de uso do dinheiro público para festas", faço-lhe um convite: venha nos visitar. Eu e diversos colegas teremos o prazer de andar com você pela UFMG para explicar-lhe o quanto esta Universidade já fez por nós – a maioria, infelizmente, não sabe disso. Do engenheiro e arquiteto que desenharam e construíram seu prédio, do dentista que curou sua dor, do filósofo que refletiu sobre como as pessoas pensam a respeito das diferenças sociais, do nutricionista que balanceia a merenda escolar da sua filha, dos músicos que compuseram as músicas da sua vida, do médico que salvou a vida do seu filho, do professor de matemática da escola do seu neto, do biólogo que move o desenvolvimento científico... Enfim, a Universidade está em tudo, mas, às vezes, o que ela produz é sutil demais para a maioria perceber. 

E não é raro encontrar aqui casos de dedicação extra ao ensino e à pesquisa: professores que compram reagentes e materiais com seu próprio dinheiro para não deixar os projetos pararem, alunos que trabalham sete dias por semana ou 18-20 horas seguidas para publicarem trabalhos de impacto mundial. Gente que, muitas vezes, faz a própria marmita para conseguir ajustar seus gastos, já que a renda é oriunda majoritariamente da bolsa de pesquisa.

Ao conversar com essas pessoas, percebe-se que a maior parte ama o que faz. Esses alunos não são exceção, como muitos pensam. A Universidade é formada, em sua maioria, por cientistas, lutadores, sonhadores, formadores de cidadãos. Se não investirmos imediatamente na criação de soluções para nossos problemas, outros países com reais investimentos em ciência vão conseguir. E aí? Vamos ter que comprar tecnologias ao preço que esses países cobrarem. Mas quem pagará por isso? O Sistema Único de Saúde (SUS)? O "Estado"? O seu "plano de saúde"? Não. Você vai pagar. Eu vou pagar. Nós vamos pagar. Tecnologia, remédios, soluções para problemas funcionam conforme uma regra bem direta: ou se produz ou se compra.

A Universidade está em tudo, mas, às vezes, o que ela produz é sutil demais para a maioria perceber. 

Eu sei que todos seriam capazes de perceber o grande impacto da destruição da universidade e da pesquisa brasileiras. Mas o preço será alto demais pra simplesmente "deixarmos isso acontecer para que as pessoas finalmente percebam a importância". Aplicar aqui a famosa máxima de “dar valor quando se perde” não soa razoável. Não dá para ficar brincando de "vingancinha" quando está em jogo a ciência e vidas. Antes de proclamar que "professor universitário é rico e esquerdista e que aluno de graduação é drogado e promíscuo”, pare e olhe para o lado. Provavelmente, um desses dois foi importante para vários setores do seu dia a dia. E provavelmente já contribuiu com alguma coisa que hoje facilita sua vida. A desmoralização da Universidade não é só 3,5% maior a partir de agora. Ela sempre existiu, mas está alcançando um patamar que pode inviabilizar a universidade e a sua produção, comprometendo irremediavelmente o futuro da nação.

Gustavo Menezes / Professor do Departamento de Morfologia do ICB