Opinião

O ato de cozinhar em tempos de Covid-19

Crise é oportunidade para revalorizar uma prática "que nos faz compreender o significado da saúde e favorece a perpetuação das tradições", escreve professora da Enfermagem

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"O ato de cozinhar nos conecta com o mundo natural e nos faz questionar sobre a origem dos alimentos e sobre o trabalho envolvido em sua produção"Raphaella Dias / UFMG

A pandemia da Covid-19 mudou drasticamente a rotina dos brasileiros. O isolamento social trouxe muitos desafios para as famílias, incluindo a necessidade de elaborar suas próprias refeições nos domicílios. O fechamento de restaurantes e de outras unidades produtoras de refeições tem exigido que as nossas habilidades culinárias sejam colocadas em prática, ou mesmo, adquiridas rapidamente.

Neste texto não tenho a pretensão de ensiná-lo (a) a cozinhar ou descrever diversas técnicas como branqueamento, congelamento, higienização e sanitização dos alimentos, propor um plano alimentar que fortaleça o seu sistema imunológico ou disponibilizar dicas para você não aumentar seu peso corporal nesse período. São incontáveis os textos e os vídeos sobre esses assuntos disponibilizados nos últimos dias, que viajam à velocidade da luz pelas nossas redes sociais. Quero convidá-lo (a) a refletir a respeito de uma etapa anterior, sobre a motivação (ou a falta dela) para o preparo de nossas refeições.

A oferta de inúmeras opções diárias para a realização das nossas refeições, principalmente fora do lar, nos deixou um pouco míopes a respeito das etapas de produção, distribuição, aquisição, armazenamento, preparo e consumo dos alimentos. E neste momento, em que estamos reclusos em casa, talvez seja uma oportunidade para nos apropriarmos do ato de produzir o que comemos.

Não há dúvida de que temos disponíveis, principalmente nos grandes centros, diversos canais de produção e de entrega das refeições. Mas dificilmente uma pessoa ou família conseguirá, de modo permanente – principalmente por motivos financeiros –, solicitar todas as suas refeições diárias. E, em algum momento, os alimentos ultraprocessados – aqueles elaborados, embalados pela indústria de alimentos e prontos para o consumo – não conseguirão mais cumprir o seu papel de facilitador e pasteurizador do ato alimentar. Isso porque, como já disse Michael Pollan, cozinhar é uma das atividades que nos define como seres humanos, e o trabalho na cozinha carrega uma força emocional ou psicológica da qual não podemos ou não queremos nos livrar.

É fato que o consumo de alimentos em seu estado natural (in natura) ou minimamente processados – que passam por processos como limpeza e remoção de partes não comestíveis – requer das pessoas a prática do cozinhar, e a pandemia do Covid-19 deixa nítido que esse ato vem perdendo espaço em nossa rotina diária, tendo em vista o aumento notório do percentual de entregas de refeições por aplicativos nesses últimos dias no Brasil.

Esse cenário justifica a indagação: o que desmotiva, ou até mesmo impede, as pessoas de cozinhar hoje em dia?

Primeiramente, uma provável resposta a essa pergunta é a perda progressiva das habilidades culinárias frente ao estilo de vida contemporâneo, em que comemos cada vez mais fora de casa e adquirimos cada vez mais produtos industrializados prontos para o consumo.

É importante destacar que o ato de cozinhar vai além da produção de refeições nutricionalmente equilibradas (ou não!) e sensorialmente atrativas (ou não!). O cozinhar favorece a congregação familiar e a transmissão de ideias, valores e verdades. Promove um espaço privilegiado para repartir, ouvir, ceder a vez, administrar as diferenças e discutir sem ofender – valores tão essenciais (em tempos de intolerância) que precisam ser exercitados em casa e em família.

Cozinhar é uma das atividades que nos define como seres humanos, e o trabalho na cozinha carrega uma força emocional ou psicológica da qual não podemos ou não queremos nos livrar.

O ato de cozinhar também nos conecta com o mundo natural e nos faz questionar sobre a origem dos alimentos, sobre o trabalho envolvido em sua produção, e nos faz até mesmo perguntar: o que é comida?

Além disso, cozinhar nossas próprias refeições nos faz compreender o significado da saúde, favorece a perpetuação das tradições e dos rituais, promove a autoconfiança e, principalmente, nos permite sentir a suprema satisfação de produzir algo. Por algum momento, em nosso dia, nos tornamos produtores, e não apenas consumidores. Quando nos tornamos produtores exercitamos a seguinte ideia: “tente outra vez, mas agora de modo mais árduo, com mais destreza e dedicação”, pois, quando assumimos apenas a posição de consumidores, materializamos o conceito fluido, líquido, destacado por Zygmunt Bauman: “as ferramentas que falharam devem ser abandonadas e não afiadas para serem utilizadas de novo, com mais habilidade e dedicação”; “a pressa deve ser mais intensa quando se está correndo de um momento fracassado".

Voltando à nossa pergunta inicial: o que desmotiva, ou até mesmo impede, as pessoas de cozinhar hoje em dia?

Uma segunda hipótese, além das perdas das habilidades culinárias, pode ser a falta de técnica para o planejamento das refeições. Supõe-se que, no cotidiano das pessoas em suas residências, o conhecimento técnico responderá, na medida em que apreendido, a três aspectos fundamentais: quanto tempo é gasto para o preparo de uma refeição, como usar racionalmente os alimentos disponíveis e qual a relação custo-benefício de cozinhar.

Conhecer o tempo para preparar uma refeição é essencial para manter a pessoa motivada e pode ser determinante para que ela cozinhe ou deixe de cozinhar. Além disso, compreender as características dos ingredientes disponíveis e saber planejar com eles um cardápio de refeições diárias pode ser determinante para manter o hábito de cozinhar. A falta de planejamento das refeições pode gerar desestímulo, pois, a partir de um compilado de ideias a serem elaboradas, é possível racionalizar a compra de alimentos, reduzir os custos com o desperdício e acelerar o processo de preparo.

Com base no planejamento e no conhecimento do tempo necessário para cozinhar, a pessoa pode analisar os custos dessa atividade e comparar com os benefícios que pretendem obter. Essa tarefa certamente não é simples, mas sem o conhecimento técnico, seja ele costumeiro ou fruto de educação formal, torna-se quase inviável.

Provavelmente, a falta de técnica pode resultar na busca de soluções desorganizadas ou mesmo extremamente sofisticadas, o que, em muitos casos, pode não dar resultado e gerar frustração. A aquisição dessa técnica permitirá que o ato de cozinhar diariamente torne-se mais intuitivo, simples e, principalmente, menos gourmetizado.

Por fim, cozinhar é um ato de grande relevância para a humanização, requer disposição para apropriar-se das habilidades culinárias e das técnicas para o planejamento das refeições, favorecendo, assim, a prática de hábitos de vida mais saudáveis. Despertar o interesse e a criatividade de crianças para o ato de cozinhar é fundamental para continuidade dessa atividade que, além de proporcionar aprendizado, contribui para o fortalecimento da prática no futuro.


Referências
Brasil. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, 2014. 156 p.

Bauman, Z. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 201p.

Gallian, D.M.C. A desumanização do comer. Estudos avançados, v.21, n.60, p.179-184. 2007.

Pollan, M. Cozinhar: uma história natural da transformação. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 448 p.

Rita de Cássia Ribeiro / Professora do Departamento de Nutrição da Escola de Enfermagem da UFMG