Pesquisa e Inovação

Pesquisa mostra como as imagens de tratados de história natural migraram para a arte

Investigação foi tema de tese de doutorado desenvolvida na Escola de Belas Artes

'Polvos', em 'Kunstformen der Natur' (1889-1904), de Ernst Haeckel
'Polvos', em 'Kunstformen der Natur' (1889-1904), de Ernst Haeckel Reprodução / Domínio Público

Em meados do século 16, o estudioso suíço Conrad Gessner publicou Historiæ animalium, considerado o cânone entre as publicações que contêm as chamadas histórias naturais. O bibliófilo fez uma compilação magistral do conhecimento disponível, originado nos mundos grego e latino e até nos bestiários da Idade Média. O empreendimento oferecia, como novidade, uma profusão de imagens, tirando partido da então recentíssima possibilidade de reprodução.

As criaturas que habitavam obras como a de Gessner não eram todas reais – não importava tanto a existência dos bichos, se era possível imaginá-los. Com o passar dos séculos, entretanto, essas imagens foram deixando de caber nos tratados que se pretendiam científicos. E as criaturas migraram para o campo da arte. Esse movimento foi objeto de estudo da professora Adriana Bicalho, da Escola de Belas Artes, em tese defendida em abril deste ano e abordada na edição 2020 do Boletim UFMG.

“Muitas imagens dessas histórias naturais são baseadas na realidade, mas elas não são registros fiéis. Trata-se de criaturas emblemáticas, que recebem camadas de sentido, denotando aspectos de caráter e a influência de mitos”, explica Adriana Bicalho. “Embora houvesse a preocupação de citar autoridades para a abordagem da natureza, não existia a diferença entre documento e fábula como entendemos hoje.”

Sem subjetividade
De acordo com Adriana, o Iluminismo começou a mudar essa maneira de tratar o conhecimento sobre a natureza, com o advento das técnicas de classificação e diferenciação. “Os elementos emblemáticos das imagens permanecem, mas manifestam-se como alegóricos e decorativos”, diz a professora do curso de Design de Moda.

Prancha de 'Thesaurus animalium primus' (1710), de Frederik Ruysch
Prancha de 'Thesaurus animalium primus' (1710), de Frederik Ruysch Reprodução / Domínio Público

No século 19, é a vez da imagem isenta de subjetividade, e as publicações ganham a forma dos atlas de ciências médicas. Na passagem para o século 20, o médico e artista alemão Ernst Haeckel faz conviver desenhos esquemáticos e formas artísticas inspiradas na natureza. “Não havia mais espaço na ciência para o maravilhoso, e as artes tomaram para si a ideia das histórias naturais, explorando as camadas de sentido sobrepostas à base real”, comenta Adriana Bicalho.

O filão foi seguido, enumera Adriana, por artistas como o documentarista Jean Painlevé, que produziu filmes curtos transitando entre ciência e arte, o surrealista Jan Svankmejer e o cineasta Peter Greenaway, que na obra Zoo trabalhou com coincidências e relações entre coisas e criaturas. O filósofo tcheco Vilém Flusser, por sua vez, criou uma lula das profundezas, que era o oposto do humano, e, com o artista Louis Bec, imaginou versões da criatura, inspirado nessa oposição radical.

A pesquisadora viu obras originais em instituições italianas e na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e consultou também acervos digitalizados. Para apreender a migração das imagens ao longo das descontinuidades históricas, ela rearranjou o conjunto inicial de mais de cinco mil imagens primeiramente em uma biblioteca, composta por oito livros.

Para o trabalho de aproximação e combinação de imagens, ela criou também 32 pequenos volumes, em procedimento emprestado dos escritos mnemônicos do filósofo italiano Giordano Bruno. A partir daí, Adriana Bicalho pôde perceber nas imagens o que ela chama de assinaturas, elementos que sobrevivem desde as histórias naturais dos anos 1500 até as obras de arte que incorporaram os códigos das criaturas maravilhosas. Instigada pelo Atlas mnemosyne, do historiador Aby Warburg, ela criou um percurso imagético dessas criaturas, desde os antigos tratados até a arte contemporânea, que chamou de Histórias preternaturais.

Na pesquisa sobre o tema no exterior, segundo a professora, predomina o objetivo de atender a indagações da história e da história da ciência. “Essas imagens, que estão nos fundamentos de nossa compreensão sobre as criaturas do mundo, ainda não são devidamente abordadas pelas artes”, conclui. 

TeseDas criaturas-imagem emblemáticas e inquietantes: a Bibliotheca, o teatro e as histórias preternaturais
Autora: Adriana de Castro Dias Bicalho
Orientadora: Maria do Céu Diel
Defesa em abril de 2018, no Programa de Pós-graduação em Artes

Itamar Rigueira Jr./Boletim 2020