Pesquisa e Inovação

Primeiro caso mundial de reinfecção pelo coronavírus com mutação E484K exige atenção

Professor do ICB participou de estudo clínico com paciente da Bahia; variante pode aumentar níveis de transmissão e anular a ação de anticorpo neutralizante

Imagem obtida por microscópio eletrônico de transmissão (MET) de partículas de Sars-CoV-2 (em vermelho) isoladas de um paciente
Imagem obtida por microscópio eletrônico de transmissão (MET) de partículas de Sars-CoV-2 (em vermelho) isoladas de um paciente National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID) / CC BY 2.0

O primeiro caso no mundo de reinfecção por covid-19 por meio de mutação originária da África do Sul, observado no fim de 2020 em paciente brasileira, foi confirmado em análise feita por pesquisadores da UFMG, do Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). De relevância imediata, a descoberta pode ter grandes implicações para as políticas públicas de saúde, estratégias de vigilância e imunização, como alertam os autores do artigo Genomic evidence of a SARS-CoV-2 reinfection case with E484K spike mutation in Brazil, publicado no início deste mês em versão preprint. O material aguarda revisão por pares da revista científica The Lancet Infectious Diseases.

No dia 12 de janeiro, um dos responsáveis pela pesquisa, o professor e virologista Renato Santana, do Laboratório de Biologia Integrativa do ICB, acompanhou uma reunião com a Organização Mundial da Saúde (OMS) na qual pesquisadores de todo o mundo abordaram a importância das variantes virais. “O Brasil teve, inclusive, uma posição de destaque nessa conversa, por ser um dos únicos países que têm identificado algumas variantes. Além de termos descoberto também essas mutações virais que estão sendo observadas internacionalmente, como a da Inglaterra, a N501Y, e essa da África do Sul, a E484K”, afirma ele.

O estudo desenvolvido por Santana e seus colegas acompanhou o caso clínico de uma paciente de 45 anos, moradora de Salvador, sem comorbidades, que se destacou como o primeiro caso de reinfecção por SARS-CoV-2 no Estado da Bahia. Diagnosticada com covid-19 em 20 de maio, a baiana voltou a ter a doença registrada em 26 de outubro, dessa vez com sintomas um pouco mais severos. Os dois diagnósticos foram confirmados por testes do tipo RT-PCR. Quatro semanas após o segundo episódio, a paciente passou também por um teste de IgG com confirmação de anticorpos. 

Por meio da análise genômica das cepas isoladas em laboratório do primeiro e do segundo episódios de infecção, os pesquisadores puderam comparar os dados entre si e com outras sequências de vírus isolados no Brasil e no mundo. Essas análises permitiram concluir que a paciente apresentou, em um intervalo de 147 dias, dois episódios de covid-19, cada um provocado por vírus de linhagens diferentes. A análise da segunda amostra confirmou a presença da cepa E484K.

Ilustração mostra evolução das duas infecções, separadas por um intervalo de 147 dias
Ilustração mostra evolução das duas infecções, separadas por um intervalo de 147 dias Laboratório de Biologia Integrativa | UFMG

Perigos
A mutação descrita foi identificada na África do Sul em outubro e, no mesmo mês, também começou a circular no Brasil, com registro inicial no Rio de Janeiro e, mais recentemente, em casos de Manaus. Mas o caso baiano foi o primeiro, em todo o mundo, no qual ela foi associada a uma reinfecção por SARS-CoV-2. E essa variante, especificamente, representa uma preocupação no meio médico. A E484K faz parte de um grupo associado ao aumento da transmissibilidade do vírus.

“Essa mutação acontece em uma proteína de superfície do vírus, que chamamos de spike. Ela se dá exatamente no sítio de interação com o receptor ACE2 nas células. O vírus usa esse receptor para entrar nas células”, detalha Renato Santana. “Essa variante amplia a ligação do vírus na superfície da célula, o que aumenta a transmissão, ou seja, a quantidade de partículas virais que conseguem entrar dentro da célula. Em consequência disso ocorre uma expansão da carga viral e da transmissão”.

Segundo o professor, um estudo funcional demonstra que a E484K anula a atividade de um anticorpo neutralizante (Bamlanivimab), usado no tratamento de pacientes graves com covid-19. “Com essa mutação, o anticorpo neutralizante não consegue se ligar. Assim, mesmo que os pacientes tomem esse remédio, o efeito combativo não será muito grande”.

Falsa impressão de ‘carteira assinada’
O virologista da UFMG explica que uma reinfecção ocorre quando a resposta imunológica montada após o primeiro caso não foi suficiente e duradoura para proteger o indivíduo durante a segunda exposição ao vírus. E o estudo desse processo – o tempo de duração da resposta imunológica em uma infecção natural com o vírus – é essencial para a compreensão dos riscos de contágio e para avaliar a durabilidade das vacinas.

Renato Santana:
Santana: variante amplia ligação do vírus na superfície da célulaArquivo pessoal

“Muitas pessoas acham que após terem covid-19 estão com ‘carteira assinada’ e não terão mais. Isso não é real, principalmente quando o vírus circula mais. Quanto mais ele circula, mais ele replica. Quanto mais replica, maior a chance de aparecerem mutações. Quanto mais mutações, mais diferentes esses vírus ficam, aumentando a possibilidade dos casos de reinfecção. Por isso, ainda é importante manter o isolamento social”, defende Renato Santana.

Mesmo considerando um cenário pós-vacina, o fenômeno da reinfecção ainda preocupa. “As vacinas serão extremamente importantes para imunizar as pessoas, mas a gente não sabe por quanto tempo teoricamente elas vão gerar uma resposta imunológica efetiva contra a infecção viral. Na maioria das infecções naturais, os anticorpos têm durado de quatro a cinco meses. Esse nosso trabalho com a reinfecção também demonstra isso”.

Segundo o professor, ainda não há uma resposta definitiva sobre o modo como a mutação pode afetar a vacina. Alguns pesquisadores seguem em busca dessa resposta por meio de análises dos pacientes vacinados. Para isso, estão coletando o soro desses indivíduos e verificando se ele consegue neutralizar os vírus mutantes. A resposta deve vir nos próximos meses.

Manaus e Minas Gerais
Além do trabalho com o IDOR e a Fiocruz, o pesquisador está envolvido com diversas análises focadas nos processos de reinfecção por variantes no Brasil, assim como Marta Giovanetti, professora colaboradora do ICB e pesquisadora do Laboratório de Genética Celular e Molecular da UFMG, que também assina o artigo.

Santana e Renan Pedra de Souza, docente do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução do ICB, estão sequenciando amostras do coronavírus coletadas em Manaus – município que teve a maior soroprevalência de covid-19 no mundo, com quase 76% da população testando positivo –, nas quais também foi identificada a mutação E484K. Na próxima semana, o grupo fará uma rodada de sequenciamento em parceria com o Laboratório Hermes Pardini. Eles vão se debruçar sobre amostras de Minas Gerais e de outros estados brasileiros na tentativa de descobrir quando essas variantes virais foram introduzidas no país e identificar em quais unidades da federação estão circulando.

Luiza França / com Assessoria de Comunicação do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino