Coberturas especiais

Redução do convívio social e restrição ao deslocamento são vitais para enfrentar pandemia

Projeção matemática realizada por grupo de 29 pesquisadores da UFMG e de outras instituições indica que medidas de isolamento e distanciamento impedem colapso dos sistemas de saúde

Em um cenário em que nenhuma medida para conter o avanço da pandemia de Covid-19 tivesse sido tomada, dentro de um mês, em 25 de abril, Belo Horizonte teria entre 50 e 90 mil pessoas necessitando de internação hospitalar, sendo que a capacidade de leitos da cidade – somadas as redes pública e privada – é de sete mil unidades. 

Por outro lado, com medidas de contenção mais intensas, a velocidade de expansão da pandemia entraria em "câmera lenta", tornando mais longa a duração da epidemia, mas também "achatando a curva", para usar um termo que já se tornou comum no vocabulário do mundo inteiro. Com isso, o dia de maior necessidade de leitos para atender pacientes internados ao mesmo tempo, pelo mesmo motivo, ocorreria em setembro, quando cerca de 1,3 mil pacientes necessitariam de hospitalização.

Entre um cenário hipotético – nenhuma medida tomada – e outro – com completa restrição de ir e vir por um período de seis meses –, há vários outros cenários, e a única certeza que se pode ter é que existe uma relação inversa entre duas variáveis: tipo de medidas adotadas para restringir o convívio social e a escalada dos casos da Covid-19. Quanto mais brandas forem as medidas, maior será o número de pessoas expostas e infectadas pelo novo coronavírus, o que sobrecarregará os sistemas de saúde, que podem colapsar.

Medidas de contenção da circulação de pessoas e de restrição do convívio são indicadas como essenciais para evitar o avanço da Covid-19
Rua Itajubá, em BH: lojas fechadas na manhã de sábadoTacyana Arce / UFMG

O estudo, denominado Projeções da evolução da Covid-19 em Belo Horizonte considerando diferentes cenários de eficácia das medidas de isolamento social, busca correlacionar as variáveis medidas de distanciamento social e taxa de transmissão. “É razoável afirmar que o tipo de medidas tomadas pelo poder público para reduzir a circulação de pessoas influencia em quanto tempo podemos ter a maior demanda sobre o sistema de saúde. Além disso, a natureza dessas medidas também parece indicar que a taxa de transmissão mantém relação com o convívio social”, explica o professor e pesquisador Ricardo Hiroshi Takahashi Caldeira, do Departamento de Matemática:  "No entanto, para saber com precisão qual será o efeito das medidas de contenção sobre a taxa de transmissão da epidemia, será necessário observar seu efeito durante alguns dias", adverte o professor, que é bolsista de Produtividade do CNPq, Nível 1B, e coordenador do grupo de trabalho. 

O modelo matemático foi construído utilizando-se parâmetros informacionais extraídos do comportamento do novo coronavírus na China e, por isso, tem limitações. “Estamos lidando com um vírus novo, e ainda não há elementos consistentes para entender como ele se comporta, o que influencia as taxas de transmissão, se há indivíduos mais ou menos suscetíveis a contrair ou não a Covid-19. Os parâmetros de transmissão na China podem ser diferentes do Brasil. Não podemos extrair certezas da experiência chinesa, no entanto é prudente estudar com seriedade o caminho adotado por eles para conter o avanço do novo coronavírus no Brasil”, sugere Takahashi.

Cenário e projeções
O estudo considerou três cenários, que variam desde nenhuma restrição ao convívio social até o isolamento social mais severo. Entretanto, o pesquisador evita dizer qual desses cenários corresponderia ao atualmente adotado no Brasil. "Não se sabe, com os dados atualmente disponíveis, qual dessas situações será aquela que mais se aproximará da que pode ocorrer no Brasil, com as medidas de contenção atualmente adotadas. Espera-se, entretanto, que dentro de alguns dias as observações já sejam suficientes para um diagnóstico mais preciso da situação", explica.

As projeções do estudo indicam que, no caso de Belo Horizonte, se não fossem adotadas medidas de restrição, já na segunda quinzena de abril, momento de maior pico de pessoas  infectadas, a capital mineira registraria em torno de 35 mil casos reportados (indivíduos infectados com histórico de atendimento e registro da doença) e 475 mil não reportados (indivíduos que contraíram o vírus e apresentam sintomas leves, ou até mesmo permanecem assintomáticos, não tendo recorrido ao sistema de saúde). 

Com a adoção de medidas com base no distanciamento social, mas sem restrições de deslocamento, por exemplo, o cenário se atenuaria e se estenderia no  tempo. O período de pico ocorreria em meados de maio, com 12,5 mil casos reportados e 200 mil não reportados. Com a adoção de medidas mais severas em relação à locomoção das pessoas e ao convívio social, o cenário mudaria drasticamente, e Belo Horizonte atingiria um pico no início de setembro, com menos de cinco mil casos, notificados ou não notificados.

Números do primeiro relatório produzido pelo Grupo de Trabalho de Modelagem da Covid-19, grupo formado por 15 pesquisadores-docentes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um da Universidade Federal de Viçosa (UFV)
Números do primeiro relatório produzido pelo Grupo de Trabalho de Modelagem da Covid-19, formado por 15 pesquisadores-docentes da UFMG e um da UFV
Arte: Roger Sander / Cedecom

O pesquisador alerta, entretanto, que as projeções não devem ser usadas para predições futuras. "Não sabemos qual será o valor da taxa de transmissão obtida com as medidas de contenção atualmente tomadas. Só será possível saber dentro de alguns dias, quando tivermos uma série de número de casos capaz de possibilitar a medição dessa taxa. Assim, se por um lado as medidas em BH são muito mais brandas que as adotadas hoje na Itália desde a segunda quinzena de janeiro, por outro a epidemia lá já estava muito mais avançada quando as  primeiras medidas foram tomadas", explica. 

"Assim, pode ser que as medidas atualmente em vigor sejam suficientes para o nosso caso –  não seriam certamente se tivéssemos esperado a ocorrência de alguns milhares de casos antes de tomá-las –, mas não há elementos neste momento para saber", pondera. Ainda de acordo com o pesquisador, "pequenas variações nos parâmetros ou na estrutura do modelo geram respostas que conduzem a números 50% maiores ou 50% menores. Para se falar adequadamente de cenários de números de doentes, seria necessário estabelecer uma faixa de mínimo a máximo, algo que ainda não conseguimos terminar de fazer", explica.

Necessidade de leitos

Estudo realizado pelos pesquisadores da UFMG e da UFV  projeta que Belo Horizonte registraria, se nenhuma medida fosse tomada, uma demanda que poderia chegar a 92 mil leitos em um único dia, no início de maio. Foto da entrada do Hospital do Ipsemg
Entrada do Hospital do Ipsemg em BH: estudo projeta que a capital registraria, se nenhuma medida fosse tomada, demanda de até 92 mil leitos em um único dia, no início de maioTacyana Arce / UFMG

O estudo realizado pelos pesquisadores da UFMG e da UFV também buscou avaliar a necessidade de leitos nos três cenários modelados: sem medidas de distanciamento social, com  medidas brandas e com medidas severas. No primeiro caso, Belo Horizonte registraria demanda que poderia chegar a 92 mil leitos em um único dia, no início de maio. Na segunda projeção, a demanda ainda se manteria alta, mas cairia para 53 mil leitos ao fim daquele mês. No cenário mais favorável, que evitaria uma pressão desmedida sobre o sistema de saúde da capital mineira, o pico da demanda aconteceria por volta da primeira quinzena de setembro, quando seriam demandados 1,3 mil leitos hospitalares. 

Isso significaria, portanto, que, com as medidas que Belo Horizonte e o estado de Minas Gerais têm tomado atualmente, ainda assim uma pane dos sistemas de saúde – públicos e privados – é inevitável? O professor recomenda calma na interpretação dos dados. "Os três cenários não são interpretáveis diretamente como 'sem medidas', 'medidas que estamos adotando' e 'medidas adotadas na Itália'. O propósito é só o de possibilitar uma compreensão de que há uma gradação de cenários possíveis, dependendo da força das medidas de contenção, além de permitir uma compreensão da relação entre reduzir o pico da epidemia e estender a duração das medidas", explica.

Mas o modelo não possibilita prever, ainda, nem quanto tempo dura a epidemia, nem por quanto tempo devem ser mantidas as medidas de distanciamento social. "Há, entretanto, uma 'faixa de certeza', que é importante que os gestores e o público entendam: o cenário em que a epidemia evolui mais rapidamente, sem qualquer medida de contenção, dura de dois a três meses. Não há hipótese, mesmo nesse cenário "mais rápido", de durar 15 dias ou um mês, como muitos estão pensando. A epidemia termina quando cerca de 90% das pessoas adquirem a imunidade. Sem vacinas, isso significa que é quando essa proporção da população já tiver tido contato com o vírus", esclarece. 

Por outro lado, se tomadas as medidas de contenção, é como se a epidemia passasse a se comportar em "câmera lenta": "o número de infectados sobe mais devagar, mas, como o total de pessoas infectadas ao longo do processo tem de ser mais ou menos o mesmo, demora mais para todos se infectarem, o que explica por que a duração, em caso de sucesso das medidas de contenção, fica maior", esclarece o pesquisador.

Nova rodada de estudos
Faltam justamente dados sobre a taxa de propagação da epidemia na capital mineira para tornar possível predizer com mais confiabilidade quanto tempo deve durar a disseminação da Covid-19 e a duração do distanciamento. Com Belo Horizonte chegando à casa dos 100 casos confirmados (96, segundo o Boletim Epidemiológico de 26/03), nos próximos dias já deverá ser possível avançar na modelagem e buscar mais respostas.

"Todos se perguntam se há algo a fazer para permitir que a sociedade volte a funcionar antes de um hipotético período de isolamento de seis meses de duração – que pode ser de quatro meses, ou nove, dependendo da parametrização. Talvez haja, e essa é uma das questões que estamos tentando examinar", finaliza o professor Ricardo Takahashi.

1 milhão de vidas salvas
A adoção de estratégias mais severas e radicais pode salvar 1 milhão de vidas no Brasil. Esse é um dos resultados de estudo realizado por grupo formado por cientistas do Imperial College, de Londres. Divulgada na quinta-feira (26), a análise, que reuniu 30 especialistas em doenças transmissíveis, calculou o número de infectados, pacientes graves e mortes em cinco cenários de disseminação do novo coronavírus em todos os países.

Campanha de vacinação de idosos contra o vírus Influenza hoje pela manhã no bairro Serra, zona sul de Belo Horizonte. Mitigação, de acordo com o estudo do Imperial College, envolve proteger os idosos (reduzir 60% dos contatos) e restringir apenas 40% dos contatos do restante da população
Campanha de vacinação de idosos contra o vírus Influenza no bairro Serra, Zona Sul de BH: mitigação, de acordo com o estudo do Imperial College, envolve proteger os idosos (reduzir 60% dos contatos) e restringir apenas 40% dos contatos do restante da população Tacyana Arce / UFMG

As projeções apresentadas pelo estudo britânico confirma tendência indicada pela análise da UFMG e da UFV. O estudo realizado pelo Imperial College of Science, Technology and Medicine, ou simplesmente Imperial College London, instituição britânica com foco em ciência, engenharia e medicina, apresenta cinco cenários para o Brasil: 

Cenário 1 (sem medidas de mitigação)
População total: 212.559.409
População infectada: 187.799.806
Mortes: 1.152.283
Indivíduos com necessidade de hospitalização: 6.206.514
Indivíduos com necessidade de internação em UTI: 1.527.536

Cenário 2 (com distanciamento social de toda a população)
População infectada: 122.025.818
Mortes: 627.047
Indivíduos com necessidade de hospitalização: 3.496.359
Indivíduos com necessidade de UTI: 831.381

Cenário 3  (com distanciamento social e reforço do distanciamento dos idosos)
População infectada: 120.836.850
Mortes: 529.779
Indivíduos com necessidade de hospitalização: 3.222.096
Indivíduos com necessidade de UTI: 702.497

Cenário 4 (Com supressão tardia)
População infectada: 49.599.016
Mortes: 206.087
Indivíduos necessitando de hospitalização: 1.182.457
Indivíduos necessitando de UTI: 460.361
Demanda por hospitalização no pico da pandemia: 460.361
Demanda por leitos de UTI no pico da pandemia: 97.044

Cenário 5 (com supressão precoce)
População infectada: 11.457.197
Mortes: 44.212
Indivíduos necessitando de hospitalização: 250.182
Indivíduos necessitando de UTI: 57.423
Demanda por hospitalização no pico da pandemia: 72.398
Demanda por leitos de UTI no pico da pandemia: 15.432

Adotar estratégias mais severas e radicais é uma medida que pode salvar 1 milhão de vidas no Brasil. Foto traz visão do bairro Cidade Nova na manha deste sábado
Visão do bairro Cidade Nova, em BH, neste sábado: estratégias mais severas podem salvar 1 milhão de vidas no BrasilMarcílio Lana / UFMG

Os autores do estudo britânico explicam que a modelagem das curvas de transmissão foram feitas com base nos padrões de dispersão dos países desenvolvidos (com alto nível de industrialização e renda per capita). Assim, em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos os resultados da pandemia podem ser ainda mais críticos do que o previsto. Os números do levantamento não levam em conta a existência de aglomerados e favelas, comunidades sem abastecimento de água e/ou saneamento, entre outros complicadores que existem no Brasil. 

Para os pesquisadores do Imperial College, os números reais da pandemia no Brasil, seus casos e óbitos, podem estar subnotificados devido à falta de testes e demora nos resultados. As estatísticas oficiais publicadas pelo Ministério da Saúde mostram, segundo o estudo, apenas a ponta do iceberg.

Os diversos relatórios estão disponíveis no site do Imperial College of London. Também é possível acessar o trabalho The global impact of Covid-19 and strategies for mitigation and suppressione as tabelas no apêndice.


EstudoProjeções da evolução da Covid-19 em Belo Horizonte considerando diferentes cenários de eficácia das medidas de isolamento social

Autoria: Força-Tarefa de Modelagem da Covid-19

Integrantes: Alexandre Celestino Almeida (UFSJ), Armando Magalhães Neves (UFMG), Claudia Lindgren Alves (UFMG), Denise Bulgarelli Duczmal (UFMG), Eduardo Rios-Neto (UFMG), Gustavo Guerrero Eraso (UFMG), Iury Valente de Bessa (UFMG), Ivair Ramos Silva (Ufop), José Irineu Rigotti (UFMG), Luís Antônio Aguirre (UFMG), Luiz Alberto Cordovil Júnior (UFMG), Luiz Henrique Duczmal (UFMG), Marcelo Martins de Oliveira (UFSJ), Márcia Luciana da Costa (UFMG), Márcio Feliciano Braga (Ufop), Marcos Flavio Vasconcelos D’Angelo (Unimontes), Martin Gomez Ravetti (UFMG), Murilo Osorio Camargos Filho (UFMG), Pedro Callado Versiani (UFMG), Pedro Henrique Coutinho (UFMG), Reinaldo Martinez Palhares (UFMG), Renato Moreira Hadad (PUC-MG), Ricardo Hiroshi Takahashi (UFMG), Roberto Colombari, Ronald Dickman (UFMG), Silvio Costa Ferreira (UFV), Tiago Alves Schieber (UFMG), Wagner Meira Jr. (UFMG), Felipe Carvalho Álvares (UFMG)

Leia a íntegra do relatório em formato PDF.

Tacyana Arce e Marcílio Lana