Pesquisa e Inovação

A 'magnífica semana mineira' de Roger Chartier

Historiador francês proferiu três concorridas conferências na UFMG sobre as complexas relações do livro no campo da cultura; uma delas está disponível no canal do IEAT

Patrícia Kauark, Roger Chartier e Ana Utsch, na conferência que lotou o auditório da Reitoria
Patrícia Kauark, Roger Chartier e Ana Utsch, na conferência que lotou o auditório da Reitoria Foto: Jebs Lima | UFMG

Na semana passada, a última de setembro, o prestigiado historiador e pesquisador francês Roger Chartier, uma das principais autoridades do mundo na história da edição, do livro e da leitura, teve uma passagem fulgurante pela UFMG e por Belo Horizonte, a qual definiu como uma “magnífica semana mineira”, com seu tradicional bom humor. Suas atividades tiveram início na noite de terça-feira, 24, em um encontro com os leitores brasileiros na livraria Quixote, na Savassi. Ali, Chartier lançou dois livros: Gutenberg, edição artesanal impressa em tiragem limitada pela Tipografia do Zé (2024, R$ 40), e Mapas e ficções: séculos XVI a XVIII, volume publicado pela Editora Unesp (2024, R$ 69).

Roger Chartier na UFMG: 'magnífica semana mineira'
Roger Chartier na UFMG: variações do mesmo temaFoto: Jebs Lima | UFMG

Na ocasião, o professor emérito do Collège de France também debateu (sempre em português, idioma que domina) o livro Um mundo sem livros e sem livrarias?, publicado pela Letraviva (2020, R$ 69,90) e organizado por Guiomar de Grammont, escritora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). A conversa de Chartier com seus leitores foi mediada pela própria Guiomar, que teve como parceira de mesa a professora Ana Utsch, da Escola de Belas Artes (EBA). Também docente do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras, Ana Utsch ciceroneou Chartier em toda sua passagem por Minas Gerais, que ocorreu a convite do Programa Cátedras Fundep/Ieat, da UFMG.

A dualidade do livro
Nos dias seguintes, o professor francês cumpriu uma agenda intensa de encontros na Universidade, com a oferta de três aulas magnas em diferentes espaços do campus Pampulha, em uma espécie de variações sobre um mesmo tema, com foco em atender às expectativas e aos repertórios dos diferentes públicos que o ouviam em cada ocasião. Na tarde de quarta, 25, na primeira dessas atividades, os alunos da Faculdade de Letras (Fale) lotaram o auditório principal da unidade para a palestra O que é um livro? O livro como discurso, o livro como objeto, na qual Chartier repassou a longa história dessa mídia, com foco no “problema” que ela, por sua idiossincrasia, instaurou no campo dos contratos e da cultura, de modo geral.

O que Chartier buscou discutir nessa aula foram os desdobramentos do fato de os livros terem instaurado uma nova questão no que concerne à lógica da propriedade, em razão de eles serem ao mesmo tempo um bem material (o produto físico, propriedade do comprador) e um bem imaterial (o discurso, propriedade do autor). Ao pensar essa “dupla natureza do livro”, como ele mesmo caracterizou (“o livro como objeto e o livro como obra”), Chartier o comparou “à criatura humana”, que também encena essa dualidade em si mesma, na retroalimentação entre corpo e alma. Partindo daí, Chartier avançou na reflexão sobre o livro como “portfólio”, isto é, como um dispositivo de guarda (de objetos, memórias, da história etc.).

Chartier tomou essa reflexão e suas nuances como ponto de partida para, na última parte de sua palestra, finalmente discutir o modo como o advento do mundo digital (e, por conseguinte, dos e-books) instaurou novas variáveis e trouxe mais complexidade para o debate sobre a natureza do livro, que agora flutua em materialidades mais complexas, em certa medida imateriais. Foi, em suma, uma conferência “com muitas aberturas hermenêuticas”, como caracterizou a professora Eliana Dutra, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich). Eliana foi a responsável por mediar a palestra junto a Ana Utsch, que presidiu a mesa.

Plaquete 'Gutenberg', lançada pela Tipografia do Zé por ocasião da passagem de Roger Chartier por Belo Horizonte
Plaquete 'Gutenberg', lançada pela Tipografia do Zé por ocasião da passagem de Roger Chartier por BHFoto: Flávio Vignoli | Tipografia do Zé

A indomável mobilidade dos textos
No dia seguinte, 26, quinta, à tarde, Chartier voltou à Faculdade de Letras para uma reunião com os membros da Congregação da unidade. Ali, docentes debateram com Chartier questões relacionadas ao mundo editorial contemporâneo, tendo como mote o livro Um mundo sem livros e sem livrarias?. Por fim, no dia 27, o auditório da Reitoria recebeu o pensador para a grande conferência A mobilidade e a materialidade dos textos na era da reprodutibilidade digital. Nela, Chartier deu uma modulação mais ampla, com foco no público genérico, às suas reflexões.

A conferência foi presidida pela professora do Departamento de Filosofia Patrícia Kauark Leite, diretora do Instituto de Estudos Avançados Disciplinares (IEAT). A mediação foi de Ana Utsch.

Após a fila, a bonança: auditório da Faculdade de Letras lotado para a palestra de Chartier sobre o livro e suas vicissitudes
Após a fila, a bonança: auditório da Letras lotado para a palestra de Chartier sobre o livro e suas vicissitudes Foto: Ewerton Martins Ribeiro | UFMG

Nessa conferência, Chartier buscou identificar e delimitar um conjunto de razões fundamentais que, em sua opinião, produzem uma incomparável mobilidade dos textos, de modo a torná-los outros de si; produzem, dito de outro modo, uma pluralidade de textos para uma “mesma” obra, ou seja, variações textuais. A sua perspectiva é que, por essa especificidade da natureza dos textos (e dos livros), eles, em certa medida, tensionam o pressuposto lógico aristotélico de que uma coisa é sempre idêntica a ela mesma. O que Chartier fez ver é que, em razão dessa mencionada mobilidade, para muitos efeitos livros e textos acabam não cumprindo essa relação de autoidentidade.

As razões para essa mobilidade seriam várias. Uma delas diz respeito ao “regime de atribuição dos escritos”, em que a mudança nessa atribuição gera variações no modo como os textos são recebidos – logo, alterações no seu significado. Um exemplo disso ocorre quando um texto anônimo ganha uma atribuição de autoria – ou, ao contrário, quando uma autoria antes atribuída é contestada e retirada. Os exemplos para esse caso vão das obras indevidamente vinculadas a Shakespeare às citações apócrifas de Clarice Lispector que abundam na internet. Outra razão para essa “mobilidade” dos textos seria a distinção entre a noção do que seja simbolicamente o autor e do que é o escritor de carne e osso, em sua identidade empiricamente humana. Lembrou-se, nesse ponto, os livros escritos por mulheres, mas assinados com pseudônimos masculinos.

O debate feito por Chartier alcançou ainda a questão das traduções, da transmutação do gênero de obras literárias (do romance para o teatro, por exemplo, caso já vivido por Dom Quixote, de Miguel de Cervantes) e dos efeitos que as variações de impressão (dos erros às mudanças deliberadas no projeto gráfico, das novas edições à escolha pelo formato dos livros) causam nas obras, gerando essa mobilidade de sua identidade. Nesse ponto, Chartier lembrou que a forma ajuda a produzir o significado, o sentido, o conteúdo – logo, em certa medida, é também conteúdo –, e que diferentes formatos (o livro de bolso e o de capa dura, por exemplo) se associam simbolicamente ao tipo de leitura a que cada conteúdo se oferece. 

Gravada, a conferência do dia 27 de setembro pode ser assistida na íntegra no canal do IEAT no YouTube.

Ewerton Martins Ribeiro