A 'magnífica semana mineira' de Roger Chartier
Historiador francês proferiu três concorridas conferências na UFMG sobre as complexas relações do livro no campo da cultura; uma delas está disponível no canal do IEAT
Na semana passada, a última de setembro, o prestigiado historiador e pesquisador francês Roger Chartier, uma das principais autoridades do mundo na história da edição, do livro e da leitura, teve uma passagem fulgurante pela UFMG e por Belo Horizonte, a qual definiu como uma “magnífica semana mineira”, com seu tradicional bom humor. Suas atividades tiveram início na noite de terça-feira, 24, em um encontro com os leitores brasileiros na livraria Quixote, na Savassi. Ali, Chartier lançou dois livros: Gutenberg, edição artesanal impressa em tiragem limitada pela Tipografia do Zé (2024, R$ 40), e Mapas e ficções: séculos XVI a XVIII, volume publicado pela Editora Unesp (2024, R$ 69).
Na ocasião, o professor emérito do Collège de France também debateu (sempre em português, idioma que domina) o livro Um mundo sem livros e sem livrarias?, publicado pela Letraviva (2020, R$ 69,90) e organizado por Guiomar de Grammont, escritora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). A conversa de Chartier com seus leitores foi mediada pela própria Guiomar, que teve como parceira de mesa a professora Ana Utsch, da Escola de Belas Artes (EBA). Também docente do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras, Ana Utsch ciceroneou Chartier em toda sua passagem por Minas Gerais, que ocorreu a convite do Programa Cátedras Fundep/Ieat, da UFMG.
A dualidade do livro
Nos dias seguintes, o professor francês cumpriu uma agenda intensa de encontros na Universidade, com a oferta de três aulas magnas em diferentes espaços do campus Pampulha, em uma espécie de variações sobre um mesmo tema, com foco em atender às expectativas e aos repertórios dos diferentes públicos que o ouviam em cada ocasião. Na tarde de quarta, 25, na primeira dessas atividades, os alunos da Faculdade de Letras (Fale) lotaram o auditório principal da unidade para a palestra O que é um livro? O livro como discurso, o livro como objeto, na qual Chartier repassou a longa história dessa mídia, com foco no “problema” que ela, por sua idiossincrasia, instaurou no campo dos contratos e da cultura, de modo geral.
O que Chartier buscou discutir nessa aula foram os desdobramentos do fato de os livros terem instaurado uma nova questão no que concerne à lógica da propriedade, em razão de eles serem ao mesmo tempo um bem material (o produto físico, propriedade do comprador) e um bem imaterial (o discurso, propriedade do autor). Ao pensar essa “dupla natureza do livro”, como ele mesmo caracterizou (“o livro como objeto e o livro como obra”), Chartier o comparou “à criatura humana”, que também encena essa dualidade em si mesma, na retroalimentação entre corpo e alma. Partindo daí, Chartier avançou na reflexão sobre o livro como “portfólio”, isto é, como um dispositivo de guarda (de objetos, memórias, da história etc.).
Chartier tomou essa reflexão e suas nuances como ponto de partida para, na última parte de sua palestra, finalmente discutir o modo como o advento do mundo digital (e, por conseguinte, dos e-books) instaurou novas variáveis e trouxe mais complexidade para o debate sobre a natureza do livro, que agora flutua em materialidades mais complexas, em certa medida imateriais. Foi, em suma, uma conferência “com muitas aberturas hermenêuticas”, como caracterizou a professora Eliana Dutra, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich). Eliana foi a responsável por mediar a palestra junto a Ana Utsch, que presidiu a mesa.
A indomável mobilidade dos textos
No dia seguinte, 26, quinta, à tarde, Chartier voltou à Faculdade de Letras para uma reunião com os membros da Congregação da unidade. Ali, docentes debateram com Chartier questões relacionadas ao mundo editorial contemporâneo, tendo como mote o livro Um mundo sem livros e sem livrarias?. Por fim, no dia 27, o auditório da Reitoria recebeu o pensador para a grande conferência A mobilidade e a materialidade dos textos na era da reprodutibilidade digital. Nela, Chartier deu uma modulação mais ampla, com foco no público genérico, às suas reflexões.
A conferência foi presidida pela professora do Departamento de Filosofia Patrícia Kauark Leite, diretora do Instituto de Estudos Avançados Disciplinares (IEAT). A mediação foi de Ana Utsch.
Nessa conferência, Chartier buscou identificar e delimitar um conjunto de razões fundamentais que, em sua opinião, produzem uma incomparável mobilidade dos textos, de modo a torná-los outros de si; produzem, dito de outro modo, uma pluralidade de textos para uma “mesma” obra, ou seja, variações textuais. A sua perspectiva é que, por essa especificidade da natureza dos textos (e dos livros), eles, em certa medida, tensionam o pressuposto lógico aristotélico de que uma coisa é sempre idêntica a ela mesma. O que Chartier fez ver é que, em razão dessa mencionada mobilidade, para muitos efeitos livros e textos acabam não cumprindo essa relação de autoidentidade.
As razões para essa mobilidade seriam várias. Uma delas diz respeito ao “regime de atribuição dos escritos”, em que a mudança nessa atribuição gera variações no modo como os textos são recebidos – logo, alterações no seu significado. Um exemplo disso ocorre quando um texto anônimo ganha uma atribuição de autoria – ou, ao contrário, quando uma autoria antes atribuída é contestada e retirada. Os exemplos para esse caso vão das obras indevidamente vinculadas a Shakespeare às citações apócrifas de Clarice Lispector que abundam na internet. Outra razão para essa “mobilidade” dos textos seria a distinção entre a noção do que seja simbolicamente o autor e do que é o escritor de carne e osso, em sua identidade empiricamente humana. Lembrou-se, nesse ponto, os livros escritos por mulheres, mas assinados com pseudônimos masculinos.
O debate feito por Chartier alcançou ainda a questão das traduções, da transmutação do gênero de obras literárias (do romance para o teatro, por exemplo, caso já vivido por Dom Quixote, de Miguel de Cervantes) e dos efeitos que as variações de impressão (dos erros às mudanças deliberadas no projeto gráfico, das novas edições à escolha pelo formato dos livros) causam nas obras, gerando essa mobilidade de sua identidade. Nesse ponto, Chartier lembrou que a forma ajuda a produzir o significado, o sentido, o conteúdo – logo, em certa medida, é também conteúdo –, e que diferentes formatos (o livro de bolso e o de capa dura, por exemplo) se associam simbolicamente ao tipo de leitura a que cada conteúdo se oferece.
Gravada, a conferência do dia 27 de setembro pode ser assistida na íntegra no canal do IEAT no YouTube.