Coberturas especiais

'Sociedade brasileira está calcificada', analisa Felipe Nunes na abertura do ano letivo

Em conferência, professor do DCP falou sobre o fenômeno político que polariza o país com base em dados da eleição presidencial de 2022

Recepção de novos alunos teve conferência sobre polarização política
Felipe Nunes falou para um auditório lotado nesta manhãFoto: Foca Lisboa | UFMG

O auditório nobre do Centro de Atividades Didáticas 1 (CAD1), no campus Pampulha, amanheceu lotado para a abertura das ações que integram as atividades de recepção dos novos estudantes da UFMG. Com o tema Como a polarização pode comprometer o futuro do Brasil?, o professor Felipe Nunes, do Departamento de Ciência Política (DCP) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), apresentou dados e conclusões do seu livro Biografia do abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, escrito em parceria com o jornalista Thomas Traumann.

O professor iniciou a sua fala mostrando as principais características da eleição presidencial de 2022, que foi, segundo ele, a mai apertada da história do país – apenas 1,8% dos votos separaram os dois candidatos. Foi também, lembrou Nunes, a primeira vez que um presidente, mesmo fazendo uso da máquina do Estado, não conseguiu se reeleger. 

"O estudo que deu origem ao livro é baseado em uma grande pesquisa. As últimas eleições foram marcadas por muito engajamento político, de um lado, e muito medo de se expressar, do outro. Nas pesquisas que realizamos, as pessoas disseram que achavam perigoso revelar seus votos em público. As pessoas tinham medo de se manifestar e isso apontava para uma situação atípica", disse.

Felipe Nunes explicou que a sociedade brasileira se tornou polarizada e socialmente calcificada depois das eleições de 2022. Ele explicou que o índice da polarização afetiva está associado à tolerância com o diferente. Já a calcificação pode ser relacionada ao fato de que a sociedade se tornou mais rígida quanto à identidade, ou seja, as pessoas estão mais intolerantes quanto a ouvir quem pensa diferente. 

"A sociedade brasileira está polarizada e calcificada. Achamos que apenas nós estamos certos. Não debatemos mais o Estado, debatemos os valores, e essa é uma mudança crucial. Estamos diante de uma guerra cultural. Os dois lados pensam parecido em questões relacionadas ao papel do Estado, como a privatização e o excesso de privilégios do Poder Judiciário, por exemplo. Mas, nas questões relativas a valores, a diferença de pensamento é enorme. Os dois lados têm opiniões divergentes quanto ao aborto, às cotas raciais e aos direitos das mulheres. Os eleitores viraram torcedores que têm visões de mundo radicalmente diferentes e não estão dispostos ao diálogo", enfatizou.

O professor do DCP afirmou que essa polarização é fenômeno inédito que transformou o  brasileiro típico em uma pessoa "que só escuta o que quer, só lê o que gosta e não tolera viver com o diferente. Daí a importância de falar com os jovens que estão ingressando agora na universidade. Só uma nova geração de brasileiros não calcificados e dispostos a debater e a produzir conhecimento será capaz de abrir o diálogo. Vai ser doloroso, mas a melhor maneira de superar a calcificação é por meio da pluralidade de ideias e do convívio saudável e do debate", disse Nunes.

Compromisso com a democracia

Reitora convocou novos estudantes a defenderem a Universidade
Reitora convocou novos estudantes a defenderem a Universidade Foto: Foca Lisboa | UFMG

Na abertura da conferência, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida corroborou com o pensamento do professor Felipe Martins de que os jovens têm responsabilidade com o futuro do país. A reitora pediu desculpas pelo atraso, justificado pelo fato de que a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) havia fechado um dos acessos à Universidade para realizar o corte de árvores, mesmo sob protestos de moradores e ambientalistas, para a realização de prova de Stock Car em agosto deste ano.

Sandra reiterou o posicionamento da UFMG no que se refere ao corte das árvores e afirmou que o país vive um momento difícil de disputas de narrativas e acusações falsas. Para ela, os novos estudantes precisam assumir o compromisso de defender a Universidade e a democracia. 

"Não temos nada contra a Stock Car, mas nossa posição é de que aqui não é local para um evento dessa natureza", disse Sandra Goulart, que, juntamente com o vice-reitor Alessandro Fernandes, divulgou nova nota sobre o evento, desta vez destacando as dificuldades que várias pessoas enfrentaram para chegar ao campus por causa do bloqueio das vias de acesso imposto pela operação de supressão de árvores.

"Contamos com todos os novos alunos para defender a universidade dos vários ataques de que ela tem sido alvo. O termo 'universidade' veio do latim para 'diversidade'. Aqui é o lugar da diferença, do respeito ao outro, da acolhida, da liberdade de expressão e da reflexão crítica. Nos orgulhamos de ser um lugar plural e, por isso, queremos que os novos alunos recebam uma educação de qualidade e que sejam formados para o futuro. Precisamos de vocês para alcançarmos um país mais justo, sustentável e com justiça social", disse a reitora aos calouros.

Estudantes se manifestaram contra o corte de árvores para a realização da Stock Car
Estudantes se manifestaram contra o corte de árvores para a realização da Stock Car Foto: Foca Lisboa | UFMG

Dissonância cognitiva
Em sua conferência, Felipe Nunes também apresentou dados que mostram que a eleição de 2022 possibilitou a formatação definitiva de um novo ecossistema de comunicação política no país. O professor explicou que, se antes as pessoas se informavam majoritariamente pela televisão, hoje há uma divisão do eleitorado e as pessoas passaram a também se informar por meio das redes sociais, o que gera o fenômeno definido como "dissonância cognitiva". 

"As pessoas procuram informação para confirmar aquilo em que elas já acreditam e para negar aquilo com que não concordam. Esse viés de confirmação formou duas grandes bolhas: uma das pessoas que se informam pela TV e pelos meios tradicionais, e outra que reúne aqueles que se informam pelas redes sociais. Em se tratando das eleições de 2022, há uma clara associação: quem assiste TV e se informa pelos veículos tradicionais votou em Lula; quem se informa pelas redes sociais votou em Bolsonaro."

O professor explicou que a divisão das pessoas em bolhas é o que causa a polarização que a sociedade brasileira está vivenciando. Para ele, essa polarização resulta na falta do debate, da conversa e do contraditório. "Daí a importância de receber os novos alunos da UFMG com essa conferência, pois a Universidade é a antítese da falta de debate. Aqui é o lugar em que a crítica é normal, onde ouvimos o diferente. É assim que se avança com a ciência."

As duas bolhas da polarização política
Felipe Nunes usou os dados obtidos em mais de 100 mil entrevistas e cerca de 150 grupos de discussão, realizados entre 2021 e 2023, para explicar que Lula só conseguiu vencer a eleição porque era o candidato mais competitivo para um grupo diverso de pessoas. O professor explicou que os eleitores de Lula integravam quatro grupos: os petistas, os progressistas, os liberais e as pessoas que pertencem às classes D e E. 

Felipe Nunes explicou como a polarização é prejudicial para o país
Felipe Nunes explicou como a polarização é nociva ao paísFoto: Foca Lisboa | UFMG

"Cada um desses grupos queria algo que o Lula poderia trazer: políticas públicas para as classes D e E, a volta ao poder para os petistas, direitos humanos para os progressistas e uma democracia plena com uma imagem internacional de respeito para os liberais. São quatro grupos completamente diferentes, mas que tinham um objetivo comum: derrotar Bolsonaro", ele afirmou.

A outra bolha, que mobilizou metade do país, também abrigava quatro grupos: os empreendedores, os conservadores cristãos, as pessoas ligadas ao agronegócio e os fascistas. "Quando entendemos que havia oito grupos organizados, fomos estudar para identificar de onde vinha a mudança que gerava a polarização política. Percebemos que o medo decidiu a eleição: metade das pessoas tinha medo da volta do PT e a outra metade temia manter Bolsonaro no poder. A eleição de 2022 foi marcada pelo voto de rejeição, e não pelo voto no candidato e nas suas propostas", disse o conferencista. 

Felipe Nunes concluiu sua fala afirmando que o país tem um duro desafio pela frente: manter a democracia e aprender a lidar com a polarização e a desinformação. Segundo ele, as pessoas podem estar em bolhas e ignorar aquilo que vai contra o que elas já acreditam, porém, para produzir o conhecimento, não basta falar o que se pensa, é preciso provar o que é dito. Para ele, a universidade tem um importante papel nesse processo.

"É muito difícil aprender em um momento em que todo mundo acha que está certo. O desafio é provar as coisas, e esse é o valor em que acreditamos. Todo mundo pode achar o que quiser, mas a verdade tem que ser comprovada por método científico. É necessário que retomemos nosso poder de debater e de lidar com o diferente", concluiu.

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Evento foi encerrado com apresentação do professor da Escola de Música Arnon Sávio e da estudante Lívia ItaborahiFoto: Foca Lisboa | UFMG

Programação
A recepção dos calouros segue ainda nesta segunda-feira. A partir das 17h, as cantoras Zélia Duncan e Ana Costa vão mostrar as canções do álbum Sete mulheres pela Independência do Brasil, inspirado no livro Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá, assinado por sete pesquisadoras e escritoras, entre as quais, a historiadora e professora da UFMG Heloisa Starling. Cada uma das mulheres retratadas no livro – Maria Quitéria, princesa Maria Leopoldina, Urânia Vanério, Maria Felipa de Oliveira, Bárbara de Alencar, Hipólita Jacinta e Ana Lins – ganhou uma canção original. O disco e o show são impregnados, diz Zélia Duncan, de “uma emoção de resgate, de corrente feminina, revelando essas mulheres que tiveram a coragem ignorada pela história oficial”.

Às 19h, a conferência de Felipe Nunes será ministrada aos calouros do turno noturno ,também no auditório nobre do CAD1. 

A programação de recepção dos alunos pode ser encontrada em matéria publicada no Portal UFMG.

A TV UFMG também acompanhou a atividade que abriu o semestre letivo na UFMG. Assista ao vídeo:

 

Luana Macieira