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À margem das urnas: o voto e as pessoas em situação de rua

Participação desse grupo populacional nas eleições é tema de reportagem especial da Rádio UFMG Educativa

Dormindo abaixo de lona: a vida de quem vive abaixo da democracia
Dormindo na lona: a vida de quem vive abaixo da democracia Ruleandson do Carmo | UFMG

A rua é um lugar de passagem para quem trabalha, estuda, se exercita ou se diverte na cidade. Entretanto, para milhares de habitantes do país, a rua não é apenas um espaço pelo se transita até o destino desejado ou no qual as atividades são realizadas. Para elas, é ambiente diário de vivência, ou melhor, de sobrevivência.

De acordo com o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas da Faculdade de Direito da UFMG, cerca de 310 mil pessoas em situação de rua vivem no país. Esse significativo contingente populacional exerce o seu direito de ir às urnas?

Na teoria, o direito ao voto é garantido, como explica o professor André Luiz Freitas Dias, coordenador do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, Plataforma de Direitos Humanos do Programa Pólos de Cidadania da UFMG. 

"Aproximadamente 302 mil pessoas em situação de rua estão aptas a votar. Cerca de 800 jovens em situação de rua têm 16 e 17 anos, e o voto para esse segmento é facultativo. Temos também o analfabetismo: aproximadamente 11% da população em situação de rua no Brasil vive, infelizmente, uma condição de analfabetismo”.

Na prática, muitas pessoas em situação de rua não votam porque não têm documentos, seja porque os tiveram confiscados pela polícia ou porque estão longe da cidade de registro eleitoral, sem acesso às informações necessárias para a troca, segundo informa Anderson Lopes, do Comitê Interministerial de Acompanhamento da Política para População em Situação de Rua e ele próprio uma pessoa que viveu nas ruas.

'Tenho que comer; não é só votar'

Belo Horizonte é terceira cidade com maior número de pessoas em situação de rua, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro, de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Vivendo nas ruas da capital mineira, os catadores Raiane Valério e Daniel Chevette personificam a realidade de milhares de brasileiros que não participam do processo eleitoral, a chamada festa da democracia. 

“Eu nem sei quem está disputando a eleição, as pessoas não conversam com a gente, não nos informam, não faço a menor ideia", diz Raiane, uma mãe que não tem contato com os filhos, foi estuprada pelo padrasto e expulsa de casa pela mãe. 

Daniel Chevette também não vê motivos para votar: “Eles [os políticos] poderiam fazer muita coisa pela gente, moradia. Mas não fazem! Eu não consigo ir lá votar assim, com essas roupas, eu tenho que comer, não é só votar”.

Recentemente, os dois foram abordados pela Justiça Eleitoral para realizar o cadastro eleitoral e regularizar a situação. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mutirões são realizados em todo o país para atender às pessoas em situação de rua e as orientá-los em relação ao voto. Entretanto, o TSE não soube informar quantos mutirões foram realizados e tampouco quantas pessoas foram atendidas. 

Para Chevette, não basta mutirão, é preciso garantir a dignidade. "A Guarda Municipal recolhe sempre os nossos pertences e os nossos documentos”, denuncia. Raiane faz coro: “Vou tirar minha nova identidade, mas onde eu vou guardar?".

Atuando há décadas em prol da população de rua de São Paulo, a maior do país, o pedagogo e sacerdote Julio Lancellotti diz que esse grupo social não é incluído e querido em nenhum dos processos democráticos, em especial, na eleição. “Votar não é prioridade na vida da pessoa em situação de rua, ela está muito mais preocupada se vai comer, se vai ter onde dormir, se vai ter água, se vai sobreviver. O voto é algo distante", diz o padre.

Em estado de inconstitucionalidade

Segundo o professor André Dias, diversas pessoas com trajetórias em situação de rua se candidataram nas eleições de 2024 com propostas específicas para esse segmento da população. Na capital paulista, um partido fictício, o Partido São Paulo Invisível (PSPi), foi criado para conscientizar a sociedade sobre a necessidade de se enxergar as pessoas em situação de rua, em especial durante as eleições. A iniciativa é da OnG SP Invisível, que desenvolve ações de capacitação e empregabilidade. O objetivo é estimular as próprias pessoas em situação de rua a apresentarem propostas para mudar sua realidade, explica o presidente da entidade, André Soler. 

O professor emérito José Geraldo de Souza Junior, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), é um dos criadores do grupo de pesquisa O direito achado na rua. De acordo com o professor, a sociedade precisa pautar debates sobre as pessoas em situação de rua: "É preciso provocar a sociedade e fazê-la responder e tomar medidas a favor desse importante segmento. Existem várias decisões judiciais a favor da população de rua, mas, em geral, nos municípios, as ações não se efetivam. No Brasil, essas pessoas vivem em estado de inconstitucionalidade”.

A vida precária de negações viola ainda mais a população de rua. Segundo Raiane e Valério, com a proximidade das eleições, surgem propostas para que vendam os votos, o que é crime. Raiane relata o que viveu às vésperas do primeiro turno das eleições municipais deste ano: “Faltando dois dias para a eleição, um cara veio e me ofereceu R$150 para eu votar em um candidato. Eu falei: ‘minha dignidade não tem preço’”. 

Resposta de quem, mesmo longe de ter uma vida digna garantida pelo Estado, ainda assim, mantém princípios, para, ao fim do dia, deitar a cabeça nas pedras das calçadas do centro de BH e tentar dormir em paz. O sono de Raiane pode ser o dos justos, mas está longe de ser profundo e tranquilo. Durante a noite, ela se reveza com o parceiro na função de vigiar o local e impedir que sejam agredidos ou mortos. 

Série de reportagens em áudio

O Núcleo de Produção e Jornalismo da Rádio UFMG Educativa produziu uma versão em áudio desta reportagem, disponível no SoundCloud e no Spotifyda emissora. A produção é uma série especial com dois episódios, realizados pelos jornalistas Ruleandson do Carmo e Breno Rodrigues - este também é responsável pela sonoplastia. Ouça na sequência.



Ficha técnica
Produção e reportagem: Ruleandson do Carmo e Breno Rodrigues
Sonoplastia e edição de áudio: Breno Rodrigues

Ruleandson do Carmo