Institucional

[Artigo] As paredes e os tempos: decifrando a saudade anunciada

Professora escreve sobre os afetos que estão por trás das pichações na Faculdade de Direito

Área do prédio da Faculdade de Direito
Detalhe de área externa do prédio da Faculdade de Direito Ana Luiza Sampaio

Há alguns anos, numa reunião com os alunos para saber como tornar mais acolhedor o espaço do terceiro andar, o Território Livre da Faculdade de Direito da UFMG, eles explicaram porque não era possível apenas jogar tinta e apagar as paredes. Havia uma história em torno de cada inscrição que, para nós, seus professores, era, em sua maior parte, apenas rabisco, impropério, sujeira. 

No meio da descrição da beleza da Frida Kahlo, do significado da frase que está no canto tal, um deles disse que, no chão do meio do pátio, há um escudo que registra a participação da Faculdade num torneio esportivo. Um dos atletas, nosso aluno, falecera logo depois. A família aparecia para visitar o lugar onde estava a epígrafe como se lavrada numa lápide que preserva a alegria que não é mais. Daquele dia em diante, por mais que as paredes me perturbem pela estética de descuido que é a imagem primeira que elas expandem, por mais que saiba da rejeição que provocam em muitos dos alunos, meu olhar para elas conduz à curiosidade sobre como se forma a saudade. Foi isso que vivi nos últimos dias, desde que as redes da Internet recolheram a reprise das fotos do Território Livre e de suas marcas.

E a pergunta que ficou, da leitura de muitas das manifestações, volta-se para a necessária ponderação de graus de agressividade e de fealdade. Onde há mais delas: nas palavras e imagens cravadas nas paredes da Faculdade de Direito ou na força de expansão da mensagem no algoritmo sem sentidos das redes sociais onde não se ouve, não se vê, não se cheira, não se toca, não se fala?

Na tarde da última segunda-feira, desci as escadas da Faculdade de Direito fotografando paredes, espaços, vãos, ensaiando a intenção de levar as pessoas para o interior do prédio. Queria trazê-las para o dentro dele no que escapa aos fragmentos de espaço e de tempo, que se espalharam pelas redes sociais no catatímico da expressão arrítmica das imagens postadas mecanicamente para propiciar o espetáculo de escândalo.

As aulas da noite já haviam começado. Os corredores estavam vazios e silenciosos. O auditório enorme, que não se enche facilmente, acolhia os alunos para compreender direito penal. E fui andando no fluxo do tempo marcado num relógio que corre em meu coração desde 1971, quando entrei pela primeira vez na Universidade Federal de Minas Gerais. Tinha 11 anos e me lembro de os professores, de cada uma das matérias que teríamos na quinta série de então, se postarem diante de nós e se darem as mãos. Eles queriam que entendêssemos bem que estavam juntos no processo de escancarar a nossa curiosidade de conhecer. 

Retrato de Frida Kahlo pintado em parede do prédio
Retrato de Frida Kahlo pintado em parede do prédio Livia Miraglia (Facebook)

Nos quatro anos seguintes, em que estudei no Centro Pedagógico da UFMG, aprendi a inventar, esse jogo da imaginação que dá a chave para entender o sistema caótico do mundo. E aprendi que o tempo das coisas se engendra simultaneamente de variadas maneiras. E que a saudade, que tem morada na expressão da cultura humana, é uma voz dentro de nós que fala de muitas maneiras. Mas é preciso viver para ter saudade.

Quando voltei à universidade federal, em 1980, já sabia dos afetos que me esperavam. Percorri durante cinco anos os mesmos corredores, as mesmas escadas que fotografei na segunda-feira, as salas em que havia inexplicáveis pilastras, então com suas carteiras de madeira escura com o buraco para o aparato da caneta tinteiro que já não se usava mais. Confesso que tive muita dificuldade de assimilar como eram os caminhos do direito, como aquilo funcionava. Tantas palavras na lei, tantos conceitos, tantos esquemas abstratos. Tanta vida lá fora. Tantos pedaços a emendar.

Talvez por isso compreenda a dificuldade que os estudantes enfrentam quando são deixados diante da liberdade de aprender por si mesmos os descaminhos dos conflitos tratados pelo direito. Vejo em cada um a jovem que eu era tentando descobrir como a vida encaixa no direito. E custando a acreditar que a justiça não era matemática. Nem era fácil no percurso da vida e da morte.

Assim, desde que começamos a lidar com as paredes marcadas sempre achei que elas eram um grito destes tempos diante das contingências e das frustrações, especialmente porque os alunos constatam logo de cara que, além das dificuldades de aplicação das regras jurídicas, eles vivem no país em que há mais faculdades de direito em todo mundo e isso diz algo sobre o que os espera na cena profissional, sobre as armações da litigiosidade que os envolverão.

O desgosto com a degradação estética, a repulsa ao mal uso do espaço público e a dificuldade de reconstruir um lugar os agasalhe no processo de aprender não impedem o entendimento de que essa forma de expressão, assimilada por uma parte desta geração de alunos, diferente da que a antecedeu e da minha de 30 anos atrás, tem mais eloquência do que a repetição às cegas da mensagem compartilhada na internet.

Por maior que tenha sido o nosso desejo de simplesmente jogar tinta nas frases, talvez tenhamos sido retidos pela força de uma reação que não absorve mansa e acriticamente tudo aquilo que a faculdade é hoje, muito mais ativa e viçosa do que nos meus anos de estudante. É difícil convencê-los disso, porque estão tão dentro de sua vivência, que não conseguem acreditar em nós quando dizemos que as possibilidades atuais são muito mais abertas. Há mais acesso a monitorias, mais grupos de estudo, de pesquisa e de extensão para todos os gostos (do direito público ao direito empresarial, passando pelo direito internacional e pelas várias modalidades de estudo de necessidades que devem ser alçadas a esfera de direitos).

O Programa de Pós-Graduação tem nível 6 e professores e alunos trabalham com entusiasmo. Ao fim do curso, pode ser que lhes aconteça exatamente o que se passou comigo, que fui levada à pós-graduação, não por uma convicção de que haveria uma carreira acadêmica à minha espera, mas porque não sabia como deixar de descer as escadas, de percorrer os corredores, de frequentar as salas de aula e suas inexplicáveis pilastras, de construir no cotidiano a matriz da saudade para sempre anunciada.

E o mais admirável é que essa geração, de susto, constatou junto conosco a classificação da Faculdade, por sucessivos anos, entre as duas melhores do país pelo ranking da Folha de S. Paulo, sem fazer qualquer movimento, sem traçar qualquer estratégia. Apenas fazendo os dias naturalmente e também naturalmente chegando a níveis excepcionais de aprovação nos exames da OAB.

Portanto, mesmo que os alunos e as alunas de hoje ainda não saibam, a saudade anunciada do estranho amor que muitos têm à configuração estética do Território Livre não se distingue das vozes e das mensagens dos alunos e das alunas de múltiplos segmentos de passado que nos tocaram nos últimos dias.

Detalhe da fachada do prédio da Faculdade de Direito, que abrigam os cursos de Direito e de Ciências do Estado da UFMG
Detalhe da fachada do prédio que abriga os cursos de Direito e de Ciências do Estado Ana Luiza Sampaio / UFMG

Se déssemos um pincel a todos os ex-alunos da Faculdade de Direito que desejam apagar das paredes do Território Livre as imagens que foram lançadas nas redes sociais, não haveria espaço para que cada um desse mais de uma pincelada. Na verdade, todos querem pixar o seu modo peculiar de viver o que foi o seu tempo nos corredores, nas escadas, nas salas de aula de inexplicáveis pilastras. Todos querem entrar de novo nos elevadores que caem para cima e andar no circuito temporal que emenda os jovens que eram e os adultos que se formaram no inusitado das circunstâncias, que revivem o comum dos dias de aprender sobre os conflitos humanos, mesmo nas dificuldades, mesmo não se adaptando, mesmo achando que poderia ser de outro jeito, que poderia ser melhor. Na verdade, cada um quer pintar a sua forma de saudade guardada num repositório lindamente separado para a garantia do que envolve a justiça como virtude para o outro: a amizade, a empatia, a alteridade, as relações humanas em constante contraditório.

E para nós, que vivemos a Universidade, que vivemos a Faculdade tão intensamente, o clamor hostil das redes sociais produziu apenas beleza: o reencontro com velhos amigos, a possibilidade de convivência deles com nossos alunos, a reflexão sobre meios criativos de acolher a memória dos dias de parede escancarando grito. E de seguir adiante recebendo esperançadamente alunos, professores e servidores técnicos-administrativos que decifrarão novos modos de conhecer os conflitos humanos, novas maneiras de fazer valer direitos e deveres, novas vertentes da saudade anunciada. 

E a velha Casa de Afonso Pena, com seus cursos de Direito e Ciências do Estado, estará lá, como esteve antes de nós, no revigorado espírito do futuro, a preparar para sempre e incansavelmente o abraço, de mãos dadas, para acalentar nos que estão por chegar a curiosidade de conhecer e de compreender a (im)permanência das coisas, a (im)perfectibilidade dos dias, esse caos de contundente humanidade, cujo maravilhamento os algoritmos e a reprodução mecânica da comunicação digital custam a apreender.

Mônica Sette Lopes / Professora associada da Faculdade de Direito da UFMG