Autonomia: princípio estruturante do conceito de universidade
Em artigo, reitora da UFMG afirma que um projeto de país moderno e soberano está atrelado a instituições com liberdade acadêmica
“Não há portões, nem fechaduras, nem cadeados com os quais você conseguirá trancar a liberdade do meu pensamento.”
Virgínia Wolf
Uma universidade encontra-se entre os bens mais valiosos do povo de uma cidade, de um estado e de um país por uma variedade de motivos: é lugar no qual se forma a juventude para o exercício das profissões de que necessita a sociedade e para o aprendizado da cidadania plena como direito de todos; é espaço no qual se dá a geração de conhecimento para a humanidade, na busca do bem-estar de todos e todas, e a interação com outros saberes; é lugar para se cultivar o espírito crítico fundado no conhecimento e na liberdade de pensamento, imprescindíveis para a construção de um país soberano, mais justo, fraterno e equânime.
Este ano de 2020 tem grande significado na vida institucional e na história da UFMG: comemoraremos, em 7 de setembro, os 93 anos da Instituição e, de maneira especial, os 90 anos de autonomia da Universidade, completados em 22 de janeiro. É preciso que nos detenhamos nessa efeméride, seu significado, sua importância, lendo-a ao mesmo tempo como conquista e triunfo; é preciso também que a reverenciemos, sobretudo em um momento em que sobre a ciência recai a sombra do descrédito.
Momento mais propício não poderia haver para resgatarmos a memória de nosso primeiro Reitor, Francisco Mendes Pimentel, que, ao se referir à autonomia universitária, afirmou que a Lei Orgânica atribui à Universidade “personalidade jurídica e assegura plena autonomia administrativa e didática [...] não podendo ser cúmplice passiva de tiranias”.
À UFMG foi outorgada “autonomia administrativa, econômica e didática” durante o governo do então presidente da República Washington Luís. Denominada, à época, Universidade de Minas Gerais, a Instituição só veio a ser federalizada em 1949, mas sua autonomia, podemos dizer, foi conquistada em nascedouro, menos de três anos após sua fundação, com base nas quatro faculdades já existentes no Estado: Direito, Medicina, Odontologia, Farmácia e Engenharia. Ratificado pelo Art. 207 da Constituição Federal de 1988, o princípio da autonomia universitária, também presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996, sempre esteve no âmago das discussões sobre as universidades modernas e de seu papel constitutivo para o Estado-nação.
As universidades modernas começaram a ser criadas, como parte do processo de invenção do mundo como hoje o conhecemos, há cerca de mil anos e, desde então, espalharam-se, não como epifenômeno, mas como elemento estruturante desse mundo. Como tantas outras instituições, a universidade gradualmente foi ganhando forma, à medida que emergiam as questões definidoras de seu papel em cada sociedade.
Bem cedo, emergiu a questão da autonomia. No desenrolar da recorrente disputa entre o poder da Igreja e o poder imperial, em 1158, um colégio de doutores, formado por docentes da Universidade de Bolonha, foi convidado pelo Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Frederico I, a apresentar um parecer sobre a legitimidade de sua autoridade. Esse colégio concluiu que a lei romana, cuja aplicação era confiada ao império, seria a única lei legítima. Logo depois, Frederico I promulgou a Constitutio Habita, oficialmente instituindo a universidade como o local em que a atividade intelectual deveria ocorrer livremente, sem a interferência de qualquer outro poder.
A universidade é centro dinamizador das sociedades contemporâneas, indispensável à própria existência de grande parte daquilo que se reconhece como a cultura dessas sociedades, de sua diversidade, de suas trocas, de seus processos de geração de valor.
Um pouco depois, no início do século XIII, a Universidade de Paris é criada com quatro faculdades: Direito, Medicina, Artes (Filosofia) e Teologia. No primeiro século de sua existência, uma duradoura disputa marcou essa universidade, em razão de uma controvérsia posta pelos docentes da Faculdade de Artes, que pediam liberdade para ensinar a lógica, a física e a ética de Aristóteles sem se preocuparem com outras disciplinas nem com os interesses específicos da Teologia. A reivindicação da liberdade de pensar pela Faculdade de Artes tinha como contraponto uma tenaz resistência da Faculdade de Teologia, que não aceitava menos que a plena submissão da Faculdade de Artes à ortodoxia teológica patrística. Diferentes correlações de forças ao longo dos anos resultaram em uma alternância de períodos nos quais prevaleceu considerável liberdade filosófica com momentos em que foram censuradas as proposições defendidas pela Faculdade de Artes. Dessa disputa emerge um dos primeiros e inegociáveis princípios da Universidade: a liberdade de pensamento e de expressão, associada à livre indagação sobre o mundo e o universo, sem obediência aos constrangimentos da censura política, religiosa ou particularista.
Essa dupla dimensão da autonomia – da não subordinação da instituição a nenhum outro poder, e da plena liberdade dos seus membros no empreendimento da busca do saber – acabou por se consagrar como elemento estruturante do próprio conceito de universidade, na forma como esse se propagou e se consolidou nos séculos que se seguiram. Importa aqui ressaltar que tal processo não ocorreu por força da casualidade nem por mera replicação dos modelos de Bologna e de Paris; tampouco surgiu por simples conveniência das nascentes comunidades ligadas às universidades que rapidamente começaram a se propagar mundo afora.
Em verdade, não faltaram, ao longo da história, recorrentes tentativas de criação de instituições de ensino cuja concepção as subordinava ao interesse e ao comando de governos e de poderes, como o ilustram as escolas monacais, as escolas episcopais e as escolas palatinas – todas anteriores às universidades, ou ainda as escolas militares surgidas no século XVIII. Notavelmente, da diversidade de fórmulas que foram experimentadas, a Universidade emergiu como uma das instituições que dão forma ao mundo moderno, agregando, à sua função de ensinar as profissões superiores, duas novas funções: (i) ser centro de pesquisa e experimentação para a geração de conhecimento novo; e (ii) ser uma instituição tanto formadora de uma cidadania ativa e informada quanto uma organização dedicada ao bem público, à construção do Estado e da nação. Wilhelm von Humbolt, fundador, em 1810, da Universidade de Berlim, que se tornou um marco do surgimento da universidade moderna, postulou os princípios dessa universidade que deveria prezar pela formação por meio da pesquisa e de uma educação humanista. Para tanto, advogava a necessária autonomia e liberdade por meio de uma relação autônoma entre Estado e Universidade. Somente uma universidade livre e autônoma poderia desempenhar seu papel de contribuir para uma nação melhor para todos os seus cidadãos.
Como consequência natural, a universidade passou a ser vista como instrumento imprescindível para a construção do Estado e capaz de exercer profundo impacto na sociedade em seu entorno – impacto que se tem acentuado cada vez mais em nosso contexto quando falamos da importância das universidades para nossas cidades, estados e países. Trata-se, nesse caso, da dimensão da extensão universitária, que juntamente com o ensino e a pesquisa viriam a compor a tão necessária e almejada – embora difícil de articular – indissociabilidade, por meio da qual as universidades deveriam se estruturar. A extensão pressupõe justamente a imprescindível face da articulação entre a sociedade e a universidade, marcando sua relevância e referência social e mesmo sua própria legitimidade.
Por um lado, parte dos elementos que explicam a centralidade e a legitimidade da instituição universitária na sociedade contemporânea, por ela tratar especificamente – como sua etimologia nos lembra – da universalidade e da unicidade, decorrem precisamente de seu caráter de transcendência em relação à cultura, às crenças e aos costumes de cada local. Por outro lado, é da interação desse animus vitae da universidade com a história, a memória, a tradição, o modo de vida, o jeito de ser do povo de um lugar que emerge uma síntese definidora do mundo moderno e contemporâneo: refiro-me agora às próprias cidades, tais quais as conhecemos hoje.
A própria possibilidade de um povo aderir ao sistema de um mundo moderno passa a requerer que esse povo construa as suas universidades.
No entanto, claro está que tais papéis acima mencionados somente podem ser exercidos pela universidade em virtude de sua autonomia, herdada dessa legitimidade. E são essas funções, precisamente, que tornam a universidade um centro dinamizador das sociedades contemporâneas, indispensável à própria existência de grande parte daquilo que se reconhece como a cultura dessas sociedades, de sua diversidade, de suas trocas, de seus processos de geração de valor.
Por esse motivo, a Universidade, dotada de autonomia, não apenas sobreviveu, mas também prevaleceu como modelo de instituição de ensino. A própria possibilidade de um povo aderir ao sistema de um mundo moderno passa a requerer que esse povo construa as suas universidades. Sem cumprir tal requisito, restar-lhe-á ocupar as periferias desse mundo, em estado de sujeição a regimes de trocas subalternas e em situação de déficit de soberania.
Nesse sentido, o próprio conceito de autonomia está relacionado a um projeto de país, moderno, soberano e livre. Sem universidades não existe a possibilidade de desenvolvimento, nem de um país, nem de uma região. Darcy Ribeiro, sociólogo que pensou a Universidade necessária dizia que “nenhuma sociedade pode viver sem universidades”. Um país somente será soberano se tiver uma capacidade de produção e compartilhamento de conhecimento instalada, capaz de assegurar a presença local de polos dinâmicos e diversos de pensamento crítico por meio do investimento sustentável e sustentado, como política de Estado, em educação, cultura, ciência e tecnologia. Não é, pois, sem razão que ainda hoje tanto se discute o conceito de autonomia universitária em todo o mundo, em especial no Brasil e na América Latina. Falar de autonomia universitária é também falar do futuro de nossas instituições e do nosso país.
Passados 90 anos, muitas foram as ameaças à autonomia institucional e ainda nos debruçamos à preservação da autonomia universitária na UFMG e nos deparamos, assombrados, com ameaças a essa autonomia, a nós conferida por decreto presidencial e indelevelmente registrada na Carta Magna para todas as demais instituições de ensino superior no Brasil. Essa ameaça se desdobra em frentes relacionadas com os dois pilares do conceito de autonomia: o fim da liberdade de pensamento e a subordinação da instituição a propósitos particularistas. Há, em curso, um movimento de negação do conhecimento científico, inibidor da dúvida e do livre pensar. Esses processos apoiam-se em crenças e em arbítrios. O modelo de mundo em que se encaixa tal programa, de uma sociedade que retorna a esquemas mais simples de se organizar, com estratificações sociais estabelecidas de berço e congeladas ao longo das gerações, assentada em controles sociais, definitivamente não parece compatível com a presença, ou mesmo a existência de universidades modernas, autônomas, que favorecem o pensar, estimulam a crítica, incitam o desejo por desvendar o desconhecido, colocam-nos à prova, evitam que cedamos ao senso comum, às respostas fáceis e pré-concebidas ou ainda ao esquecimento e à desinformação; enfim, universidades de elevado impacto para a sociedade ao seu redor e para o futuro da nação, e que servem ao propósito de possibilitar a nossa inserção soberana nesse mundo que se projeta no futuro próximo.
Autonomia universitária não é um adendo, um suplemento que pode ser dispensado ou revisado ao sabor de intempéries políticas e ideológicas.
Abordar a autonomia universitária na UFMG e em suas instituições coirmãs demanda o dever e o compromisso com a reflexão crítica permanente. Embora a autonomia universitária faça parte do Comentário Geral nº 13 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, universidades e instituições de fomento e pesquisa em todo o mundo têm sofrido ataques, que vão de interferências nas estruturas de gestão, asfixia financeira, bloqueio de recursos constitucionais, cerceamento da liberdade de cátedra ao silenciamento de acadêmicos, proibição de eventos, entre outras ações. O antidoto é a liberdade, que, em nossas instituições, deve se materializar sob a forma de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, como dimensões interconectadas.
Que a lembrança de 22 de janeiro 1930 nos chegue sob a luz do presente. Façamos o que Pierre Nora, historiador francês, sugere: percebamos a memória como percebemos a vida, carregada por coletivos e, nesse sentido, em permanente transformação, susceptível à dialética da lembrança e do esquecimento, vulnerável a todos os usos e manipulações, sujeita a longas latências e súbitas revitalizações.
No entanto, a ambiguidade que permeia o conceito de memória – como algo estático e dinâmico, simultaneamente – não deve recair sobre a compreensão que fazemos do princípio da autonomia universitária. Autonomia universitária não é um adendo, um suplemento que pode ser dispensado ou revisado ao sabor de intempéries políticas e ideológicas. Ela é basilar, norteadora e capaz de assegurar às universidades e instituições de ensino superior a condição de espaços para a livre discussão e manifestação do pensamento, requisito indispensável para produção de conhecimento e formação de cidadãos e cidadãs, que, por meio da educação, contribuem para edificar a vida em sociedade e fortalecer a democracia.
Do mesmo modo, se entendemos que a autonomia plena se concretiza sob três esteios – a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial – essas dimensões, inerentes e interconectadas, não podem ser, nenhuma delas, ignoradas ou relativizadas. Contudo, autonomia universitária, não resta dúvida, não é soberania. Enganam-se, é preciso salientar, aqueles que proferem que a autonomia é, no ambiente acadêmico, interpretada como soberania. Nossas instituições de ensino são públicas e prestam contas à sociedade sobre aquilo que realizamos, estão sujeitas às legislações vigentes, às determinações dos conselhos de educação e à fiscalização dos órgãos governamentais. Na UFMG, o princípio da transparência e da integridade é constitutivo do ethos institucional, assim como o é a autonomia universitária.