'Somos gente, e ponto', diz Jairo Marques sobre pessoas com deficiência
"Se eu fosse ‘especial', não seria o último a desembarcar do avião", ironizou o colunista da Folha de S.Paulo em palestra na UFMG
A pessoa com deficiência não quer fazer parte de um subgrupo chamado de "especial". Ela deseja ser tratada como todas as outras, afirmou o jornalista Jairo Marques, durante a palestra Diversidade e inclusão: um olhar para o século 21, realizada na noite desta quinta-feira, dia 15, no campus Pampulha. A atividade inaugurou a série de seminários Viver UFMG, destinada aos calouros da graduação, e a formação transversal que trata do mesmo tema.
“Talvez, ‘especial’ seja quem tem muito dinheiro no banco", brincou. “Se eu fosse, de fato, especial, não seria o último a desembarcar do avião nem precisaria ser carregado no colo”, afirmou Marques, que é colunista do jornal Folha de S. Paulo, além de repórter e professor de jornalismo.
Jairo Marques fez críticas a termos e nomenclatura usados em referência às pessoas com deficiência, como expressão "portador de necessidades especiais". “Quando alguém é ‘portador’ de algo, pressupõe-se que, a qualquer momento, ele pode se livrar daquilo que porta. A deficiência, no caso, está com a gente o tempo todo, é nossa condição permanente”, argumentou.
Dirigindo-se especialmente aos calouros, que chamou de "futuros gestores" da sociedade, Jairo Marques reivindicou: “Peço a ajuda de vocês para não deixar que as pessoas com deficiência sejam transformadas em uma mera sigla, a PCD”, disse, afirmando que a terminologia resumida tem-se tornado comum em vários meios. “Não se pode mais ‘coisificar’ as pessoas. A nossa batalha é levar para a sociedade a mensagem de que somos gente, e 'ponto'”.
O jornalista também falou de duas situações emblemáticas sobre o poder estigmatizante das palavras: o uso do termo "mongoloide" e do conceito de "paralisia cerebral". Ele lembrou que, até recentemente, era costume chamar de "mongol" ou "mongoloide" as pessoas com Síndrome de Down, aludindo à sua semelhança fisionômica com o povo da Mongólia. “A expressão entrou em desuso justamente porque os nativos daquele país se sentiram incomodados com a comparação”, disse.
Quanto à expressão "paralisia cerebral", legitimada pela Medicina, Jairo Marques considera que gera um perigoso mal-entendido. “As pessoas com esse tipo de deficiência não têm o cérebro paralisado. Na maioria dos casos, não possuem absolutamente nenhum déficit intelectual, apenas motor.”
Viagem do cego
É comum que os indivíduos sem limitações físicas ou mentais projetem suas expectativas para as pessoas com deficiência – o que, segundo o jornalista, é um erro, já que os últimos têm percepções e emoções totalmente diferentes sobre os eventos do mundo.
“Já ouvi a seguinte pergunta: qual o sentido de um cego viajar, já que ele não enxerga? Pois peçam a um cego para descrever uma viagem e vão se surpreender com tudo aquilo que ele percebe e vocês, não”, provocou Jairo, enumerando “a posição em que o vento bateu, o aroma da comida local e a temperatura do pé na areia” como “impressões valiosas, mas que o senso comum considera medíocres”.
Para o jornalista, a construção de um diálogo mais efetivo com as pessoas com deficiência é a chave para solucionar vários dos conflitos que prejudicam sua autonomia e sua qualidade de vida. “Você gosta quando alguém te toca ou te arrasta sem seu consentimento?”, questionou. “A cadeira de rodas faz parte do meu corpo. Então, quando alguém, mesmo que bem intencionado, me conduz sem pedir, isso é um tipo de invasão e gera constrangimento”, alegou.
Reflexões de Jairo Marques sobre o tema da inclusão podem ser lidas no blog Assim como você, hospedado no site da Folha.
Mudar o mundo, sentado na cadeira
Jairo Marques também repercutiu a morte do cientista Stephen Hawking, ocorrida na véspera. Mesmo tendo sofrido de esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa que lhe tirou totalmente o controle dos músculos voluntários, Hawkings foi um dos mais consagrados físicos e cosmólogos contemporâneos.
“Em uma das charges que circularam na internet, o cientista morto foi retratado caminhando em direção ao céu. Apesar da intenção de homenageá-lo, o ilustrador impôs no desenho sua própria concepção de liberdade e sucesso, atrelada à capacidade de andar rumo ao paraíso. Stephen, por sinal, era ateu e não precisou conseguir andar para mudar o mundo. Creio que ele reprovaria a homenagem", brincou o jornalista.
A tendência das pessoas consideradas normais de imputar às pessoas com deficiência suas percepções e avaliações também se manifesta, segundo Jairo Marques, no trato com os autistas. “Em geral, olhamos para a criança autista desejando que ela supere essa condição para que consiga se realizar. Mas devemos entender que ela não deixará de ser autista e verá o mundo sob outra perspectiva, que não é pior nem melhor do que a nossa”, insistiu.
Por fim, Jairo Marques discorreu sobre alguns casos famosos envolvendo personagens com deficiência. Um deles se refere à campanha de organização da Copa do Mundo de 2014. Na ocasião, informou-se que uma criança tetraplégica daria o pontapé inicial da competição, vestida com um traje especial que auxiliava na transmissão dos impulsos motores para as pernas.
Para o jornalista, o episódio consistiu em uma espetacularização da esperança desses pacientes, em que a audiência e a autopromoção foram objetos de interesse – mais do que a real implicação da tecnologia na vida da pessoa com deficiência.
A história de um rapaz com paralisia cerebral que cursou a faculdade graças ao esforço do pai em se matricular no mesmo curso também foi problematizada pelo jornalista. Em 2013, o Fantástico veiculou matéria sobre o jovem Marco Aurélio, que dependia do pai, por exemplo, para abrir os livros e fazer anotações durante as aulas, bem como levá-lo ao banheiro. “O caso é comovente e gerou mobilização na mídia. Mas é preciso ter sempre em mente que esse não é o caminho correto. O ideal é que a gente consiga se virar”, defendeu.
Sociedade mais equânime
A vice-reitora Sandra Goulart Almeida, que recepcionou o jornalista Jairo Marques, destacou que a UFMG está cada vez mais empenhada em promover a acessibilidade e os direitos das pessoas com deficiência. Pela primeira vez, a Universidade recebe, em seu quadro discente, pessoas com deficiência por meio da política de cotas. “Ainda temos muito a avançar, e a participação de todos é fundamental”, disse.
Sandra lembrou que a atividade ocorria no dia seguinte ao do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, que militava em favor dos direitos humanos e das minorias. “É um momento de tristeza, que nos lembra do dever de estarmos unidos para lutar contra os abusos, a fim de termos uma sociedade mais justa, equânime e inclusiva”, refletiu.