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Com discursos em defesa da educação, docentes da FaE recebem título de emérito da UFMG

Distinção foi concedida a Eduardo Mortimer, Lucíola Licínio de Castro e Maria Alice Nogueira, em cerimônia nessa quarta-feira

Novos eméritos da FaE: Maria Alice Nogueira, Eduardo Mortimer e Lucíola Licínia de Castro
Novos eméritos da FaE: Maria Alice Nogueira (à esquerda), Eduardo Mortimer e Lucíola Licínia de Castro Foto: Foca Lisboa | UFMG

É bastante simbólico que na semana de aniversário de Paulo Freire, patrono da educação no Brasil, a Faculdade de Educação da UFMG, responsável por formar milhares de educadores ao longo de seus 54 anos de história, conceda a três de seus professores o título de professor emérito, a mais alta distinção acadêmica outorgada a docentes da Universidade. Eduardo Fleury Mortimer, Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Maria Alice de Lima Gomes Nogueira receberam o título em cerimônia na noite desta quarta-feira, 21 de setembro, realizada no Auditório Neidson Rodrigues, da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG, campus Pampulha.

Andrea Moreno: simbologia singular
Andrea Moreno: simbologia singular Foto: Foca Lisboa | UFMG

O patrono se fez presente nos discursos de homenageados e autoridades, que se uniram numa defesa enfática da educação como meio de transformação social, da democracia e do fortalecimento da universidade pública, gratuita e de qualidade. A diretora da FaE, Andrea Moreno, enfatizou a alegria de a homenagem se dar dois dias após o aniversário do educador pernambucano, que completaria 101 anos na segunda-feira (19 de setembro), e também na gestão recém-iniciada por ela e pela vice-diretora, Vanessa Neves. 

“Quiseram o destino, o acaso lendário e as agendas que fosse ainda no começo da nossa gestão a cerimônia de outorga do título de professor emérito aos professores Eduardo Mortimer, Lucíola de Castro e Maria Alice Nogueira”, disse Andrea Moreno. “Quis o destino também que a comemoração de hoje fosse próxima ao aniversário de Paulo Freire, educador que, entre tantos feitos, foi autor da obra sobre educação que, segundo recente inquérito publicado no Portal do Bicentenário, foi a mais fundamental para entender e transformar o país. O professor habita nosso fazer como inspiração cotidiana”, completou.

Andrea Moreno também destacou o fato de a cerimônia ocorrer num momento de decisão, após quatro anos intensos de um movimento “que nega a ciência, vilipendia e ataca a universidade pública, reduzindo seus recursos”. “Quis também o acaso que essa cerimônia acontecesse a alguns dias do dia em que nós – oxalá – poderemos pôr fim a um ciclo difícil para o povo brasileiro, para o nosso país, para a educação pública, para a universidade" disse.

A reitora Sandra Goulart Almeida também iniciou sua fala citando o patrono da educação brasileira e fez alusão à chuva que caiu na tarde de ontem, em Belo Horizonte. “Hoje é dia de esperançar. E vimos uma chuva que hoje nos brindou depois de uma seca de mais de três meses, anunciando tempos melhores. E digo esperançar não no sentido da sua etimologia, mas na concepção libertadora do nosso Paulo Freire, conhecida de todos nós, mas que vale repetir: ‘É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar, porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E a esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir, esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo’”, afirmou.

Sandra Almeida: responsabilidade com o futuro
Sandra Goulart Almeida: responsabilidade com o futuro Foto: Foca Lisboa | UFMG

Em consonância com Andrea Moreno, a reitora também situou a cerimônia no contexto sociopolítico brasileiro atual. “Este evento tem ainda simbologia singular, diante do contexto em que vivemos, ao qual eu não poderia deixar de aludir. Esta cerimônia ocorre em um ano especialmente desafiador, quando ainda enfrentamos a pandemia da covid-19, que tanto impacto tem causado em nossas vidas e na nossa instituição, e quando estamos diante de um pleito histórico, que coloca sobre nossos ombros uma responsabilidade pelo futuro do nosso país. Quero crer que nós, como povo, faremos a escolha certa, pois, repito, é tempo de esperançar e de mudarmos juntos”, conclamou.

Reconhecimento do legado
Dirigindo-se aos novos eméritos, os quais classificou como “presença longínqua e perene” nos corredores e salas de aula da faculdade, Andrea Moreno disse: "Estamos muito felizes hoje porque estamos afetados pela presença de vocês, pelas veredas que nos deixam e pelas estradas que ainda constroem. Ouvi um dia desses que o passado e o futuro são dois polos que o presente materializa e une. A vida acadêmica desses três mestres foi magistral naquilo que fizeram, naquilo que fazem e naquilo que ainda nos provocam a pensar e a fazer”, afirmou a diretora da FaE.

Sandra Goulart Almeida também exaltou os homenageados, como “exemplos a serem seguidos de comprometimento, de dedicação a nossos estudantes, à Faculdade de Educação e à nossa UFMG”. A reitora classificou os professores também como “figuras quase indissociáveis da instituição à qual dedicaram seus melhores esforços e sua vida”. “A instituição é, sem dúvida, maior do que todos nós, mas ela se nutre das contribuições singulares e significativas de cada um de seus membros. Em alguns casos, pode-se dizer que a Universidade se orgulha de abrigar aquelas pessoas que, como nossos homenageados de hoje, não apenas se dedicam com esmero à tarefa que lhes foi atribuída – de ensino, de pesquisa e extensão –, mas que nos honram com sua dedicação, perseverança, condução ética, em prol de um fazer público baseado no bem comum, no bem da instituição e em prol do país no qual acreditamos”, disse.

Ao agradecer o legado deixado pelos docentes, a reitora da UFMG lembrou que a Universidade segue contando com a experiência dos novos eméritos. “Agora não mais para as tarefas do dia a dia, mas para aquilo para o qual vocês são insubstituíveis: nos ajudar a esperançar, a juntar-nos com outros para fazer de outro modo, a enxergar o futuro, nos ajudar a traçar os rumos de uma instituição comprometida com o seu povo e fazer essa instituição expandir-se sempre para os que virão depois. Esse gesto de hoje sinaliza que a instituição os convoca mais uma vez para continuar formando a juventude de que necessita o país e, assim, construir uma sociedade cada vez mais relevante, mais inclusiva, mais justa, mais equânime”, finalizou.

Vigorosa atuação e sensibilidade

Eduardo Mortimer: formação cidadã
Eduardo Mortimer: formação cidadã Foto: Foca Lisboa | UFMG

O professor Eduardo Mortimer agradeceu aos amigos e familiares, em especial sua esposa, Regina – “onde tudo começa e onde tudo termina na minha vida” –, e rememorou tempos anteriores ao seu ingresso na FaE, importantes para a construção de sua formação cidadã. “Escolhi me lembrar de algo anterior à minha entrada na Faculdade, mas que, de certa forma, marcou a minha atuação: minha formação política, que começa na minha adolescência, mais ou menos quando o AI-5 foi editado, em dezembro de 1968. Eu tinha apenas 13 anos, e minha inconformidade e revolta com a situação política do país nasceram nessa época. A partir daí, fui me tornando cada vez mais consciente das grandes desigualdades que existiam no Brasil e de como os militares se mantinham no poder às custas de uma repressão violenta aos opositores. No início dos anos 70, cantava-se o Brasil verde e amarelo, ‘ame ou deixe-o’, mas, nos porões da ditadura, muitos cidadãos eram assassinados”, lembrou.

O ingresso de Mortimer na UFMG como aluno foi em 1974. “Durante a graduação, fui um estudante atuante politicamente, fui eleito para a diretoria do DCE. Devo muito de minha formação política a essa época. Isso viria a refletir-se na minha vontade de transformar o modo como se ensinava a química e teve uma grande influência na minha participação em órgãos de decisão da vida universitária. Essa mesma consciência é que me faz hoje lutar contra o genocídio, o racismo, a homofobia, a misoginia e tantas outras características negativas do atual governo brasileiro”, disse.

Mortimer também mencionou o atual contexto sociopolítico nacional, lembrando Paulo Freire. “Eu saúdo a vida e tenho esperança de que, num futuro próximo poderemos ter de volta melhores dias para a educação, ciência, tecnologia, saúde e o meio ambiente no Brasil. Termino com uma citação de Paulo Freire, que bem expressa a busca por uma educação em ciências de qualidade e ao mesmo tempo um compromisso com a realidade do educando: ‘É na realidade mediadora, na consciência que dela tenhamos, educadores e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação’”, concluiu o professor emérito.

Tânia Resende: saudação aos homenageados
Tânia Resende: saudação aos homenageados Foto: Foca Lisboa | UFMG

Responsável pela saudação aos novos eméritos, a professora Tânia de Freitas Resende, do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação da FaE, lembrou seus anos como aluna de Duzão – assim o professor é conhecido entre amigos, alunos e colegas. Como aluna e também como colega, quando docente, Tânia disse ter assistido a “um caminho de extraordinária e vigorosa atuação de Duzão nos campos científico e educacional, contemplando ensino, pesquisa e extensão, com foco nos processos de ensino e aprendizagem de ciência na sala de aula e na escola, além de uma sensibilidade especial para as interações e os processos comunicativos, discursivos entre professores e alunos”.

Independência de pensamento e versatilidade
A professora Lucíola Licínio de Castro declarou sua emoção com a honraria a ela concedida pelos pares e pela Universidade. “Sinto-me sensibilizada e honrada em receber o título de professora emérita da UFMG. Sensibilizada pelo carinho e reconhecimento de todos aqueles que aprovaram o meu nome para a outorga desse título. Sem dúvida, é uma honra integrar o quadro de professores eméritos desta instituição, cujo desempenho em diversos campos lhe confere destaque e prestígio nos cenário nacional e internacional. Meus agradecimentos se estendem aos meus professores, de todos os níveis de ensino que eu frequentei, a colegas desta Faculdade e de todos os cursos que realizei, a meus ex-alunos e a minha família”, disse.

Lucíola de Castro: educação para um mundo justo e fraterno
Lucíola de Castro: educação para um mundo justo e fraterno Foto: Foca Lisboa | UFMG

Graduada em jornalismo pela UFMG, em 1969, a professora também lembrou de sua participação no movimento estudantil, no contexto ditatorial. “Vivíamos anos sombrios, mas, como jovem restrita ao microuniverso da minha redondeza e da minha família, fatores condicionantes da minha miopia social, não percebi a realidade na qual estávamos mergulhados. É por isso que, quando recuo no tempo, as memórias desse período que adquirem mais força e brilho são minhas experiências e vivências do movimento estudantil. Foi quando percebi as injustiças com mais nitidez e especialmente as possibilidades de mudança. Foi quando tomei consciência das arbitrariedades do regime militar. Foi quando passei a lutar por um mundo mais justo e mais fraterno”, rememorou.

Por fim, em consonância com seus colegas, destacou o grave momento enfrentado pelas universidades públicas brasileiras e defendeu a retomada de investimentos na área da educação. “Infelizmente esta Universidade, cuja liberdade de cátedra e cujos recursos financeiros cresceram, sobretudo, na primeira década dos anos 2000, está ameaçada. Estamos vivendo tempos difíceis, tempos de concentração de riqueza e empobrecimento dos mais pobres, tempos de tentativa de desmonte da universidade pública e dos órgãos de fomento à pesquisa, tempos em que circulam críticas à defesa do meio ambiente e à política antiarmas, tempos em que são disseminadas ideias racistas, machistas e homofóbicas, tempo em que as mentiras são incessantemente repetidas até soarem como verdade. Mas a universidade, seus alunos e servidores continuam trabalhando na luta por dias melhores, que sem dúvida chegarão”, defendeu.

De Lucíola, Tânia Resende destacou, como marcas de sua atuação como professora, pesquisadora, colega, pessoa e cidadã, “a independência de pensamento, a agudeza de espírito, a potência da argumentação, a versatilidade e a capacidade de transitar por diferentes campos”. “Minha gratidão a ela é ainda maior porque essa sensibilidade que ela demonstrou em nossa relação é estendida por Lucíola para todas as gentes, especialmente as mais atingidas pelas diversas desigualdades de nossa sociedade. O compromisso apaixonado de Lucíola com a luta contra desigualdades de diversas naturezas se expressa em seus posicionamentos políticos, no seu engajamento na discussão das questões da educação básica pública e na sua voz corajosa  que denuncia as contradições da vida universitária contemporânea”, destacou.

Ética e generosidade

Maria Nogueira: condições de acesso ao mérito
Maria Nogueira: suporte familiar e institucionalFoto: Foca Lisboa | UFMG

Última dos novos eméritos a discursar, a professora Maria Alice Nogueira se declarou grata e honrada por receber a “mais alta distinção que a carreira acadêmica reserva a seus membros”. “E quis o destino generoso que essa láurea me fosse concedida ao lado de colegas e amigos tão queridos: a professora Lucíola Licínio e o professor Eduardo Mortimer, que eu nunca consegui chamar assim, solenemente, porque, para nós, ele é e sempre será o Duzão. Trago ainda uma palavra de gratidão a toda a comunidade da Faculdade de Educação, ou seja, a minha casa, posto que minha vida acadêmica transcorreu dentro dela por mais de 30 anos. Não sei dizer o quanto estou comovida por receber essa recompensa em pleno exercício de minha vida produtiva. Digo isso porque sigo em atividade em nosso programa de pós-graduação, agora na condição de professora voluntária”, manifestou.

Em seguida, Maria Alice passou a elencar momentos de sua trajetória, destacando as condições favoráveis que ela teve para construir sua trajetória acadêmica. “Quando me vi diante desse reconhecimento conferido por meus pares, não pude deixar de fazer a mim mesma uma pergunta: quais as razões para esse prêmio? Faço eu verdadeiramente jus a ele?”, questionou.  Após listar e agradecer às dezenas de pessoas e entidades que a apoiaram, Maria Alice afirmou que o maior saldo de sua atuação foram as décadas de entusiasmo com o ensino e a aprendizagem. “Tendo chegado a este ponto, permito-me parafrasear um grande sociólogo da educação francês, Christian Baudelot, para dizer que se algum mérito houve, foi porque a mim foram dadas todas as condições de acesso ao mérito. Do apoio familiar à ajuda e colaboração de colegas e alunos, passando por todo o suporte material e institucional que recebi. Mas, pensando bem, fica algo sim, que não posso e não quero escamotear: ficam mais de três décadas de entusiasmo com a produção do conhecimento e com sua transmissão”, afirmou.

Ao concluir, a professora comprometeu-se a continuar lutando pela diminuição das desigualdades no país. “Resta-me apenas dizer que buscarei honrar esse título com a continuidade de meu trabalho de pesquisa sobre os mecanismos cada vez mais insidiosos, sutis, ocultos por meio dos quais as desigualdades educacionais se criam de modo incessante. Em particular, quero continuar trabalhando sobre as leis que regem a distribuição tão desigual do privilégio cultural, porque acredito que é só com base nessas leis que se pode mensurar, examinar, compreender os efeitos sociais das situações em que há essa desigualdade”, comprometeu-se.

Ao falar de Maria Alice, sua orientadora no primeiro ano de pós-graduação, Tânia Resende destacou, como suas principais qualidades acadêmicas, “o vasto conhecimento do campo da sociologia da educação, o rigor analítico e a disciplina intelectual”. “Outro de seus traços marcantes é uma permanente disposição para a busca do novo no campo científico”, continuou. Segundo Tânia Resende, o empenho de Maria Alice na realização direta de pesquisas se observa até hoje. “Ela continua indo a campo com entusiasmo e energia e, muitas vezes, consegue fazer mais entrevistas do que a maioria de nós, seus colegas mais jovens”, destacou. Do ponto de vista pessoal, Tânia lembrou que Maria Alice tem “uma atitude profundamente ética, respeitosa, delicada e generosa”, características que também marcam sua trajetória acadêmica e a relação com colegas e alunos nos mais de 30 anos de atuação na UFMG. 

O evento pode ser assistido, em gravação completa, no canal da Faculdade de Educação da UFMG no YouTube.

Eméritos da Faculdade de Educação

Hugo Rafael