Elza Afonso, a 'pequena grande mestra' da Direito, é a nova emérita da UFMG
Elzinha, como é carinhosamente chamada por colegas e ex-alunos, é a primeira mulher agraciada com o título na Faculdade
“Que responsabilidade enorme a de homenagear professora tão especial, tão singular! Afinal, são diversas as gerações de estudantes da Vetusta Casa de Afonso Pena que tiveram a oportunidade de se encantar pela nossa pequena grande mestra, professora Elza Maria Miranda Afonso.” A citação, impressa há 15 anos na revista do Centro Acadêmico Afonso Pena (Caap) da Faculdade de Direito da UFMG, explicita, em parte, os motivos que justificam o título de Professora Emérita, concedido pela UFMG nessa quarta-feira, 6, à primeira mulher do quadro de docentes da Unidade.
A homenagem dos estudantes, que, naquele ano, se despediam da “professora titular de seus corações”, que se aposentadoria dois anos mais tarde, foi lembrada com gratidão por Elzinha, como é chamada pela comunidade universitária. Em discurso dividido em 12 itens, ela recordou com carinho a homenagem, que se somou a tantas outras, expressas em flores, chocolates, cartas, poemas e dedicatórias em monografias, dissertações, teses, artigos e livros publicados pelos seus ex-alunos.
“A meus alunos, não sei como agradecer, por tudo que me deram, por toda a alegria e por toda a riqueza que trouxeram ao meu espírito e à minha vida", afirmou a professora, que se graduou na própria Faculdade, em 1967. Três anos depois, foi admitida em seu quadro docente e lá também fez o doutorado. Na Casa de Afonso Pena, também ocupou cargos de gestão, como chefia de departamento e coordenação da pós-graduação.
'Recebi mais do que ofereci'
Durante todo o tempo, Elza discorreu, em tom sereno, mas firme, sobre sua gratidão à UFMG e à Faculdade de Direito. Num balanço de sua trajetória, Elzinha citou trecho do poema Em paz, de 1915, do poeta Amado Nervo, que conhecera na adolescência, e o guardou, como que numa profecia de si mesma, para, agora, “ajustar apenas o final”. Diferentemente do poeta, ela afirmou que, em seu balanço, “não há simetria entre o que deu e o que recebeu, e, por isso, não poderia dizer à vida 'nada me deves, vida, estamos em paz', porque o que recebi foi muito mais, é muito mais, é infinitamente mais, do que consegui oferecer".
Para a vice-diretora da Faculdade, professora Mônica Sette Lopes, que saudou Elza Afonso em nome da Congregação, o título de emérita significa o reconhecimento, “na essencialidade de sua própria existência, desse admirável testemunho de dignidade, de resistência, de fé, de lealdade, de humildade, de autenticidade, de crença na pessoa, no Direito e na Justiça".
“A professora Elza nunca escondeu os riscos do mundo. Ela sabe da iminência da injustiça – dos que padecem dela, dos que a cometem”, afirmou Sette Lopes, lembrando que a professora não se sente à vontade com a ênfase dada ao fato de ter sido a primeira mulher docente na Faculdade de Direito, porque, a seu ver, “o feminino em que ela naturalmente se reconhece é o mesmo de todas as mulheres de antes e de depois (...) e, por isso, ela representa bem a essencialidade de nós, mulheres, de podermos ser o que quisermos. Um sonho passível de realização a depender de que vamos ao encontro dele".
Defesa da universidade pública
Sempre destacando a relação harmoniosa e respeitosa vivenciada com alunos, colegas e funcionários, durante os 36 anos em que atuou como professora da Faculdade de Direito, Elza Afonso reservou um trecho de seu discurso para agradecer à universidade pública – "um mais belos e contundentes discursos em defesa da educação", pontificou a reitora Sandra Regina Goulart Almeida no pronunciamento que encerrou a cerimônia.
A homenageada destacou que, no momento em que escrevia seu discurso, havia no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade e dois mandados de segurança questionando a constitucionalidade e legalidade do Decreto 9.741/2019, publicado em 29 de março passado, que bloqueou 30% do orçamento geral dos Institutos e Universidades Federais.
A professora destacou que as inquietações e preocupações que afloraram com as ameaças ao futuro dos cursos de filosofia e sociologia e as manifestações pelo país e pelo mundo em defesa das universidades encontram-se em plena sintonia com a proteção que a Constituição da República de 1988 confere à universidade pública, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, como descrito no artigo 205.
Destacando a égide sob a qual estão os princípios que regem a Constituição, a professora citou artigo por artigo, como que para exortar colegas, funcionários, estudantes e familiares ali presentes a defenderem a educação e a universidade pública, o que, para ela, significa “defesa da Constituição e defesa do futuro das novas gerações e da sociedade brasileira”.
Como em uma aula, a professora pontuou as responsabilidades da federação e as finalidades do ensino, em seus diversos níveis, para a promoção humanística, científica e tecnológica do país, descritas no artigo 214, inciso V, da Constituição. Ao artigo 206 ela recorreu para mencionar a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, a gestão democrática e a garantia de qualidade. Já a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial é consagrada no artigo 207, enquanto o dever da União com o financiamento e com a manutenção e desenvolvimento do ensino está explicitado nos artigos 211 e 212. "Nada disso foi produto do acaso”, observou a professora. “Ao contrário. Tudo foi resultado de longos debates e de uma longa reflexão que ligou as pontas do sistema democrático, que se implantava no país”, recordou.
Por fim, Elzinha acrescentou que “a Constituinte de 1988, espelhando os anseios da sociedade brasileira, não desconhecia que o projeto dessa sociedade que se queria só poderia ser realizado pela educação de qualidade, porque somente ela pode quebrar as amarras da dependência e libertar o povo. Em um país como o nosso, em que há tanto por se fazer, como se pode prescindir da universidade pública? A Constituição de 1988 entende que não se pode”, concluiu.
Para o diretor da Faculdade de Direito, Hermes Vilchez Guerrero, aluno da professora Elza no mestrado, o momento em que assinou o diploma da professora foi de muita emoção. Ele disse que, diariamente, recorda-se de um dos ensinamentos passados por ela: “As normas foram feitas para servir aos homens, senão, não fazem sentido”, afirmou.
Retribuição
A reitora Sandra Regina Goulart Almeida destacou, ao encerrar a cerimônia, a satisfação em saudar a professora, "uma das mais queridas e ilustres docentes da instituição, figura quase indissociável da entidade à qual sempre se referiu com respeito e reverência incondicionais. Hoje é a UFMG que devolve à professora a homenagem e a deferência que ela lhe dedicou em tantos momentos de sua vida”.
Citando o poema Com licença poética, de Adélia Prado, a reitora referiu-se à professora como quem “cumpriu a sua sina, inaugurou linhagens, que se estenderam a seus orientandos/as, fundou reinos e foi desdobrável em sua generosidade, como apenas ela sabia ser”. E acrescentou: “E é com muito orgulho que participamos deste momento em nossa vida institucional quando vivenciamos a união da comunidade acadêmica na defesa da importância e do impacto da educação e da ciência para o desenvolvimento regional e para a construção de uma sociedade cada vez mais tolerante e menos desigual. É esse impacto e relevância que precisamos sempre destacar e defender, especialmente em momentos difíceis como os que vivemos".