Em dissertação, jornalista explora relação entre o futebol e a modernidade ‘desconfiada’ de BH
Registros em antigas revistas esportivas e documentos oficiais revelam as influências cruzadas de dirigentes dos clubes, profissionais de imprensa e políticos
A fundação do Sport Club, em 1904, deu início a uma era em que campos rudimentares na Avenida Paraopeba (hoje Augusto de Lima) eram referência para o futebol praticado em Belo Horizonte. Pouco tempo depois, no entanto, esses descampados passaram a ser considerados acanhados para as pretensões de modernidade da jovem capital.
Já nos anos 1940, os três maiores clubes tinham seus estádios na região central da capital — e, outra vez, as aspirações de modernidade passaram a demandar a construção de redutos mais sofisticados para o futebol. Assim, foram erguidos o estádio Independência, na esteira do planejamento para a realização da Copa de 1950, e, 15 anos depois, o Mineirão.
As questões que entrelaçam o projeto de modernidade da cidade e o cotidiano dos clubes de futebol são abordadas na pesquisa “O dinheiro do Otacílio”: indícios das relações entre agentes políticos, clubes de futebol e sujeitos de imprensa na modernidade desconfiada da Belo Horizonte dos anos 1940, de autoria do jornalista e relações públicas Ives Teixeira Souza. Em fevereiro deste ano, o trabalho foi defendido como dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich).
“Quando a gente investiga a história de Belo Horizonte, o desejo de modernidade aparece, de uma forma ou de outra. Ao tecer as relações da época, percebi que sempre pairou uma ‘desconfiança’ na cidade”, observa o autor.
Segundo Ives Teixeira, essa ‘desconfiança’ é um elemento presente na experiência do cidadão belo-horizontino desde então. “O tempo todo pede-se uma mudança — e por quê? Porque se desconfia que a Belo Horizonte do presente seja insuficiente para o projeto de futuro”, comenta.
A imprensa, de acordo com o autor, teve significativa influência naquele contexto. “Os clubes, nos anos 40, passaram a produzir conteúdo jornalístico próprio, feito pelos mesmos jornalistas que cobriam a cidade. Essa espécie de parceria era capitaneada por Januário Carneiro, o fundador da Rádio Itatiaia. Ao mesmo tempo, os times de futebol se promoviam, construíam ou reformavam seus estádios”, afirma o pesquisador.
Dinheiro e influência
Ives Teixeira afirma que a imprensa, o futebol e as relações políticas foram cruciais para a conformação da “modernidade desconfiada” de Belo Horizonte. “O dinheiro do Otacílio” foi a metáfora usada, em seu trabalho, para retratar esses encadeamentos. “Em 1948, o então prefeito Otacílio Negrão de Lima emprestou dinheiro aos clubes, como parte de uma política que chamou de ‘socorro dos clubes esportivos'”, justifica.
Em sua investigação, o autor recorreu ao acervo digital da coleção Linhares, que integra a coleção de obras raras da UFMG. Da revista América, a Voz dos Americanos, foram extraídas informações sobre os estádios do América e o empréstimo concedido ao clube pela prefeitura. O jornal Folha de Minas Esportiva abordou outras repercussões dos empréstimos; nas revistas Olímpica e Vida Esportiva foram encontrados registros históricos sobre os estádios de, respectivamente, Cruzeiro e Atlético.
Política, futebol e imprensa
A pesquisa de Ives Teixeira revelou como o desenvolvimento dos clubes de futebol foi impulsionado pelo poder público e também pela imprensa. Ainda nas três primeiras décadas do século 20, o município doou os terrenos que formaram o patrimônio inicial de clubes como Atlético, América, Cruzeiro e Minas Tênis Clube.
“Alguns vereadores participaram das negociações do financiamento público para os clubes. O prefeito Otacílio Negrão de Lima, por sinal, era ex-jogador e havia sido presidente do América. Alair Couto, que presidiu o clube no fim dos anos 1940, colaborou financeiramente para o nascimento da Rádio Itatiaia. Januário Carneiro, a pedido dos dirigentes, criou as revistas dos clubes de futebol”, afirma o autor.
De acordo com Ives Teixeira, o terreno da Sede Campestre, na Pampulha, foi doado ao Cruzeiro por Américo Giannetti, que tinha pretensões de se candidatar a governador nas eleições de 1950. O acordo foi mediado pelo jornalista Britaldo Soares, que era vice-presidente do clube.
“Em julho de 1945, Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, participou da reinauguração do estádio do Cruzeiro, que passou a levar seu nome. Algumas fontes afirmam que JK era conselheiro do Atlético, mas, de acordo com o estatuto do Cruzeiro, ele é o único patrono do clube”, diz o pesquisador.
Ligações como essas são, para Ives Teixeira Souza, inimagináveis nos dias de hoje. “A 'modernidade desconfiada' é assim. É uma modernidade que nunca basta, nunca está. É sempre para o futuro, para a vanguarda prometida. Mas que parte de certa confiança, de certa associação, para desconfiar. Quando o futuro parece chegar, desconfia de novo. É ‘desconfiar confiando’. Só é possível desconfiar depois de confiar naqueles que aglutinam com você”, discorre.
Dissertação: “O dinheiro do Otacílio”: indícios das relações entre agentes políticos, clubes de futebol e sujeitos de imprensa na modernidade desconfiada da Belo Horizonte dos anos 1940
Autor: Ives Teixeira Souza
Orientador: Nísio Antônio Teixeira Ferreira
Defesa: 7 de fevereiro de 2022, no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG