Conferência das Humanidades começa com discursos em defesa do papel do cientista humano
Em cerimônia de abertura, organizadores destacam relevância da investigação em humanidades em tempos sombrios
Nos últimos anos, o mundo mudou muito – infelizmente, para pior: a democracia representativa entrou em crise em diversos países, vários políticos de direita e extrema-direita alcançaram o poder, e a crise humanitária advinda das migrações de refugiados se radicalizou no entorno do Mar Mediterrâneo, entre o Norte da África, o Oeste da Ásia e a Europa Ocidental. Dado esse contexto e considerando a crise política enfrentada atualmente pelo Brasil, foi impossível que, na abertura da 2ª Conferência Internacional das Humanidades, a reitora da UFMG, Sandra Regina Goulart Almeida, deixasse de afirmar: “hoje, infelizmente, estamos mais pessimistas do que estávamos em 2016, quando realizamos a nossa 1ª Conferência Internacional das Humanidades”.
Contudo, apesar desse cenário negativo, o tom da cerimônia realizada na noite dessa segunda-feira, 9, não foi de pessimismo, mas de engajamento. “Em uma realidade como essa, resistir e se indignar é, mais do que nunca, necessário: resistir à imposição de valores, à intimidação, ao silenciamento, à criminalização do conhecimento, ao autoritarismo, ao fundamentalismo, à tentativa do desmonte de nossas instituições, ao esvaziamento do debate e da autonomia universitária”, disse a reitora, considerando os aspectos em que o cenário doméstico se relaciona com esse contexto mundial de crise humanitária. Sandra ainda lembrou que, ao longo da história, as instituições universitárias brasileiras – em particular, as públicas – nunca escolheram o lado fácil da história. “Pelo contrário, elas, altivamente, escolheram dar voz à inspiração de liberdade, de igualdade e de justiça. E agora não será diferente”, garantiu.
Luiz Carlos Villalta, professor do Departamento de História da UFMG e presidente da comissão organizadora da Conferência, fez coro ao argumento de Sandra: para ele, face a um tempo “em que o mundo se vê tomado por trevas”, organizar um evento como esse representa “uma ousadia”: “é uma realização que traduz o compromisso da UFMG com o desenvolvimento das ciências e com a sustentabilidade, o bem-estar e os direitos humanos”, afirmou.
Segundo Villalta, a saúde do ambiente científico de um país está diretamente relacionada com a saúde da própria nação. “É importante lembrarmos que os sucessos das ciências e dos Estados são indissociáveis: a ruína de um é indício da decadência de outro”, disse.
Obrigação de existir
Considerado um mentor da Conferência Internacional das Humanidades, o secretário do Conselho de Filosofia e Ciências Humanas (CIPSH) da Unesco, Luiz Oosterbeek, chamou a atenção para a especificidade do lugar do investigador de humanidades na construção da vida comum. “Falamos muitas vezes sobre as dificuldades, mas eu penso – e acho que muitos aqui pensamos – que nós [os investigadores das humanidades] existimos precisamente para esses momentos de dificuldades”, disse. “Porque a nossa importância nos outros momentos é muito pequena; somos quase irrelevantes. Nós não sabemos solucionar problemas, essa não é a nossa especialidade: nós somos pessoas que propõem enxergar os dilemas, pensar o médio e o longo prazo, cogitar o que pode dar errado e o que pode dar certo. Nesse sentido, nós trazemos, sobretudo, uma mensagem de otimismo – e, assim, aqueles de nós que desistem não estão, do meu ponto de vista, cumprindo a sua obrigação profissional. Nós temos essa obrigação profunda, como comunidade acadêmica, de existir; e eu nem digo 'resistir', mas existir”, afirmou, destacando, com isso, o caráter também simbólico do evento.
O integrante das comissões organizadora e científica do evento lembrou o papel central que a América Latina e o Brasil tiveram no debate preparatório da Conferência Mundial das Humanidades, realizada em Liège, na Bélgica, em 2017. “O modelo de discussão que foi criado aqui [na 1ª Conferência Internacional de Humanidades, realizada na UFMG, em 2016] inspirou os debates que foram realizados depois em diversos continentes. Essa conferência de 2016 foi reconhecidamente a mais organizada, a mais participativa e a que obteve os melhores resultados”, disse.
Transdisciplinaridade
Representando a Unesco no evento, Susana María Vidal, especialista em bioética e ética da ciência do programa da Unesco para a América Latina e o Caribe, afirmou que o cenário abordado pela reitora da UFMG “nos coloca frente a problemas complexos, que requerem de maneira urgente que invistamos em abordagens transdisciplinares que não incluam apenas os saberes acadêmicos, mas também outras fontes de conhecimento”. Ela também lembrou que a promoção das humanidades é uma prioridade estratégica para a Organização das Nações Unidas: “para avançar no cumprimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, a Unesco assumiu um compromisso com a produção de conhecimento no campo das humanidades. Essa produção é parte de sua estratégia global”, disse.
Álvaro Maglia, secretário executivo da Associação de Universidades do Grupo Montevidéu (AUGM) – entidade que organiza a Conferência juntamente com a UFMG e com as instituições da Unesco –, ressaltou, por sua vez, que, relativamente às humanidades, “não somente temos que melhorar a produção de conhecimento científico, mas também discutir como aplicamos esse conhecimento”.
Ainda participaram da mesa de abertura Luciano Mendes, coordenador regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Valden Steffen Júnior, presidente – reeleito para a gestão 2020 – do Fórum de Dirigentes das Instituições Públicas de Ensino Superior de Minas Gerais (Foripes-MG), Marcus Vinicius David, reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – que no evento representou o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), João Carlos Salles Pires da Silva – e Evaldo Ferreira Vilela, presidente da Fapemig.
Iniciada na noite dessa segunda-feira, a 2ª Conferência Internacional das Humanidades segue até quarta, dia 11, na Faculdade de Ciências Econômicas (Face), com intensa programação.