Pesquisa e Inovação

Conferência das Humanidades começa com discursos em defesa do papel do cientista humano

Em cerimônia de abertura, organizadores destacam relevância da investigação em humanidades em tempos sombrios

Sandra Goulart Almeida:
Sandra: tempo de resistência e indignaçãoRaphaella Dias / UFMG

Nos últimos anos, o mundo mudou muito – infelizmente, para pior: a democracia representativa entrou em crise em diversos países, vários políticos de direita e extrema-direita alcançaram o poder, e a crise humanitária advinda das migrações de refugiados se radicalizou no entorno do Mar Mediterrâneo, entre o Norte da África, o Oeste da Ásia e a Europa Ocidental. Dado esse contexto e considerando a crise política enfrentada atualmente pelo Brasil, foi impossível que, na abertura da 2ª Conferência Internacional das Humanidades, a reitora da UFMG, Sandra Regina Goulart Almeida, deixasse de afirmar: “hoje, infelizmente, estamos mais pessimistas do que estávamos em 2016, quando realizamos a nossa 1ª Conferência Internacional das Humanidades”.

Luiz Villalta:
Villalta: sucesso de países é indissociável do sucesso de sua pesquisaFoto: Raphaella Dias / UFMG

Contudo, apesar desse cenário negativo, o tom da cerimônia realizada na noite dessa segunda-feira, 9, não foi de pessimismo, mas de engajamento. “Em uma realidade como essa, resistir e se indignar é, mais do que nunca, necessário: resistir à imposição de valores, à intimidação, ao silenciamento, à criminalização do conhecimento, ao autoritarismo, ao fundamentalismo, à tentativa do desmonte de nossas instituições, ao esvaziamento do debate e da autonomia universitária”, disse a reitora, considerando os aspectos em que o cenário doméstico se relaciona com esse contexto mundial de crise humanitária. Sandra ainda lembrou que, ao longo da história, as instituições universitárias brasileiras – em particular, as públicas – nunca escolheram o lado fácil da história. “Pelo contrário, elas, altivamente, escolheram dar voz à inspiração de liberdade, de igualdade e de justiça. E agora não será diferente”, garantiu.

Luiz Carlos Villalta, professor do Departamento de História da UFMG e presidente da comissão organizadora da Conferência, fez coro ao argumento de Sandra: para ele, face a um tempo “em que o mundo se vê tomado por trevas”, organizar um evento como esse representa “uma ousadia”: “é uma realização que traduz o compromisso da UFMG com o desenvolvimento das ciências e com a sustentabilidade, o bem-estar e os direitos humanos”, afirmou.

Segundo Villalta, a saúde do ambiente científico de um país está diretamente relacionada com a saúde da própria nação. “É importante lembrarmos que os sucessos das ciências e dos Estados são indissociáveis: a ruína de um é indício da decadência de outro”, disse.

Público lotou auditório 1 da Faculdade de Ciências Econômicas, que em seguida receberia conferência do jurista, historiador e diplomata Rubens Ricupero
Público lotou auditório 1 da Face, que em seguida receberia conferência de Rubens Ricupero Raphaella Dias / UFMG
Luiz Oosterbeek:
Luiz Oosterbeek: cientista humano que desiste falha com sua obrigação profissionalRaphaella Dias / UFMG

Obrigação de existir
Considerado um mentor da Conferência Internacional das Humanidades, o secretário do Conselho de Filosofia e Ciências Humanas (CIPSH) da Unesco, Luiz Oosterbeek, chamou a atenção para a especificidade do lugar do investigador de humanidades na construção da vida comum. “Falamos muitas vezes sobre as dificuldades, mas eu penso – e acho que muitos aqui pensamos – que nós [os investigadores das humanidades] existimos precisamente para esses momentos de dificuldades”, disse. “Porque a nossa importância nos outros momentos é muito pequena; somos quase irrelevantes. Nós não sabemos solucionar problemas, essa não é a nossa especialidade: nós somos pessoas que propõem enxergar os dilemas, pensar o médio e o longo prazo, cogitar o que pode dar errado e o que pode dar certo. Nesse sentido, nós trazemos, sobretudo, uma mensagem de otimismo – e, assim, aqueles de nós que desistem não estão, do meu ponto de vista, cumprindo a sua obrigação profissional. Nós temos essa obrigação profunda, como comunidade acadêmica, de existir; e eu nem digo 'resistir', mas existir”, afirmou, destacando, com isso, o caráter também simbólico do evento.

Álvaro Maglia:
Álvaro Maglia: importância de discutir aplicação do conhecimento científicoRaphaella Dias / UFMG

O integrante das comissões organizadora e científica do evento lembrou o papel central que a América Latina e o Brasil tiveram no debate preparatório da Conferência Mundial das Humanidades, realizada em Liège, na Bélgica, em 2017. “O modelo de discussão que foi criado aqui [na 1ª Conferência Internacional de Humanidades, realizada na UFMG, em 2016] inspirou os debates que foram realizados depois em diversos continentes. Essa conferência de 2016 foi reconhecidamente a mais organizada, a mais participativa e a que obteve os melhores resultados”, disse.

Transdisciplinaridade
Representando a Unesco no evento, Susana María Vidal, especialista em bioética e ética da ciência do programa da Unesco para a América Latina e o Caribe, afirmou que o cenário abordado pela reitora da UFMG “nos coloca frente a problemas complexos, que requerem de maneira urgente que invistamos em abordagens transdisciplinares que não incluam apenas os saberes acadêmicos, mas também outras fontes de conhecimento”. Ela também lembrou que a promoção das humanidades é uma prioridade estratégica para a Organização das Nações Unidas: “para avançar no cumprimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, a Unesco assumiu um compromisso com a produção de conhecimento no campo das humanidades. Essa produção é parte de sua estratégia global”, disse.

Susana María Vidal:
Susana María Vidal: complexidade dos problemas exige abordagens transdisciplinaresRaphaella Dias / UFMG

Álvaro Maglia, secretário executivo da Associação de Universidades do Grupo Montevidéu (AUGM) – entidade que organiza a Conferência juntamente com a UFMG e com as instituições da Unesco –, ressaltou, por sua vez, que, relativamente às humanidades, “não somente temos que melhorar a produção de conhecimento científico, mas também discutir como aplicamos esse conhecimento”.

Ainda participaram da mesa de abertura Luciano Mendes, coordenador regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Valden Steffen Júnior, presidente – reeleito para a gestão 2020 – do Fórum de Dirigentes das Instituições Públicas de Ensino Superior de Minas Gerais (Foripes-MG), Marcus Vinicius David, reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – que no evento representou o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), João Carlos Salles Pires da Silva – e Evaldo Ferreira Vilela, presidente da Fapemig.

Iniciada na noite dessa segunda-feira, a 2ª Conferência Internacional das Humanidades segue até quarta, dia 11, na Faculdade de Ciências Econômicas (Face), com intensa programação.

Ewerton Martins Ribeiro