Saúde mental: memes da internet debocham dos usuários dos Caps e reforçam estigma
Produção especial da Rádio UFMG Educativa reúne especialistas para discutir os riscos da viralização de piadas sobre os centros de atendimento psicossocial
Mensagens como “O paciente mais fraco do Caps”, “O diálogo mais fraco do Caps”, “Levando a beste para o Caps antes que seja tarde”, acompanhadas de vídeos de pessoas em situações constrangedoras, têm se tornado virais em redes sociais, nos últimos meses. No perfil do Instagram Despatologiza, a psicóloga e mestra em Psicologia e Educação pela UFMG Flávia Albuquerque alerta: entre profissionais de saúde mental, circulam relatos de frequentadores dos Centros de Atenção Psicossocial que viraram alvo de memes (mensagem com finalidade humorística) e estão abandonando os tratamentos de reabilitação social por causa dos deboches virais nas redes sociais.
De acordo com o professor Paulo Brasil, do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG, os Caps são resultado da Reforma Psiquiátrica no Brasil, que tinha como principal foco o fim dos manicômios e das internações psiquiátricas prolongadas. “Tivemos, a partir da década de 1970, a Reforma do Modelo Assistencial em Saúde Mental, propulsionado pelo casal Basaglia, da Itália. Representou a construção de uma nova maneira de pensar não só o adoecimento mental como também a loucura. Em sintonia com a luta antimanicomial, ela [a reforma] iniciou processo de criação de novo paradigma para a assistência em saúde mental. É uma reforma ainda em processo, pautada na reinserção social e cultural do indivíduo com adoecimento mental”, explica.
No Brasil, o primeiro Centro de Atenção Psicossocial, o Caps Itapeva, na capital paulista, foi inaugurado em 1987. Há 22 anos atuando no espaço, o psiquiatra Vladimir de Freitas Junior é diretor técnico do Centro, oficialmente nomeado como Luiz da Rocha Cerqueira, antigo coordenador de Saúde Mental do estado de São Paulo e defensor da luta antimanicomial. "A finalidade de criar um Centro de Atenção Psicossocial era justamente utilizar algum tipo de equipamento que substituísse o hospital psiquiátrico e os manicômios. O Brasil tinha, naquela ocasião, muitas unidades de longuíssima permanência, e a finalidade era buscar a reabilitação, a ressocialização das pessoas que porventura tivessem sido abandonadas pela família ou não tivessem condição de fazer esse contato. Isso ocorreu no início da redemocratização do Brasil", conta Freitas Junior. "O processo veio nessa toada, para garantir atendimentos de melhor qualidade, com equipe multiprofissional, não restritos à figura do médico psiquiatra. A pessoa recebe acompanhamento psicológico, social e passa a ter uma possibilidade maior de se reabilitar."
Permanência e não internação
Nos Caps, prevalece a lógica da permanência em convívio familiar e social e não a da internação, da saída impedida e do afastamento, que imperava nos manicômios. Segundo o subsecretário de Atenção à Saúde de Belo Horizonte, André Menezes, graduado em Medicina pela UFMG, na maior parte dos atendimentos, as pessoas passam o dia nos Caps, realizando atividades diversas, e voltam para a casa à noite. Em casos mais graves de crises de saúde mental, quando o adoecimento põe a própria pessoa doente em risco, pode ser necessária a permanência durante a noite.
Para o médico, os Caps colocam o Brasil em posição de destaque no cenário internacional. “O Caps é uma unidade de atendimento para pessoas em sofrimento mental. É uma unidade que se propõe a acolher esse paciente no momento de transtorno agudo na lógica da liberdade”, diz Menezes, que complementa: “As equipes são multidisciplinares. Temos psiquiatra, psicólogo e terapeuta ocupacional."
Não é brincadeira
“Um problema histórico”. Assim, o psiquiatra André Menezes define o deboche de que são vítimas as pessoas que recorrem aos atendimentos do Caps. De acordo com ele, pessoas com transtornos mentais sempre foram alvo de piadas, mas o fenômeno ganhou nova dimensão com o advento dos memes das redes sociais. “Isso só reforça o estigma da doença mental, o estigma que, ao longo dos anos, levou muitos desses pacientes para os manicômios e para a morte. Lá atrás, no início do século, havia o entendimento de que o lugar de quem tinha o sofrimento mental era fora da sociedade. Quem faz esse tipo de piada pouco ou nunca passou por um Caps para entender o trabalho bonito que tem sido feito, inclusive com produções artísticas", argumenta.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o doutorando em Comunicação Thiago Costa investiga a relação entre saúde mental e preconceito em redes sociais associados a práticas de humor. O doutorando vê como perigosa a ridicularização dos Caps por meio de memes: “As pessoas tendem a levar os memes como se fossem brincadeira, mas eles são coisa séria, porque nem sempre há o reconhecimento de que eles podem estar carregados de significados diferentes para diferentes pessoas. As novas gerações têm mais facilidade para falar sobre saúde mental, mas, ao mesmo tempo, houve uma banalização da discussão. Há um imaginário muito forte da figura do 'maluco', que pertence a tais instituições, aquela pessoa que vai ficar infinitos dias dentro do manicômio, e, caso volte ao convívio da sociedade, é porque fugiu. Muitos memes tratam disso, da pessoa do Caps que fugiu e está andando na rua", lamenta Costa.
Radiodocumentário especial
Para aprofundar as discussões sobre os Caps e problematizar os memes que abordam e impactam a saúde mental, a Rádio UFMG Educativa produziu o radiocumentário Memetização e saúde mental: o triste deboche do Caps. Produção e reportagem são de Ruleandson do Carmo, e edição e sonoplastia, de Cláudio Zazá. Ouça: