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Michelle Murta, professora da Fale, é a primeira pessoa surda a se formar doutora na UFMG

Tese defendida em janeiro, na área de Estudos Linguísticos, trata da iconicidade nos verbos da Libras

Michelle Murta, sinalizando UFMG:
Michelle Murta, sinalizando 'UFMG': "quero sempre saber até onde consigo chegar"Acervo pessoal

Dezoito de janeiro de 2022 é uma data especial para Michelle Andrea Murta e para a UFMG. Esse foi o dia em que ela se tornou a primeira pessoa surda a se formar doutora na Universidade. Michelle, que já era a primeira professora da Universidade nessa condição – ingressou em 2016, na Faculdade de Letras (Fale) –, defendeu, no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos (Poslin), os resultados de sua pesquisa sobre o papel da iconicidade na Língua Brasileira de Sinais, a Libras [leia sobre a tese adiante, nesta matéria].

Orientada pelo professor Guilherme Lourenço de Souza, Michelle Murta defendeu sua tese para um público de mais de 100 pessoas, que acessaram uma plataforma on-line. A banca foi apoiada por três intérpretes de Libras, vinculados ao Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI), da UFMG.

“Iniciei o doutorado em 2018, ciente do desafio de cursar um programa de nota máxima. Mas eu já havia superado as dificuldades do processo de seleção, e mesmo sem um orientador que dominasse a Libras, antes da chegada do Guilherme, persisti. Eu quero sempre saber até onde consigo chegar, quais são os meus limites”, afirma a professora, que se graduou pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no polo Cefet-MG, e fez o mestrado na PUC Minas.

Familiares oralizados
Michelle Murta nasceu em Belo Horizonte, onde sua mãe trabalhava na casa dos avós paternos, mas logo com um mês de vida foi levada pela família materna para Salinas, no Norte mineiro, onde foi registrada e cresceu. Ela conta que 80% dos familiares por parte de mãe têm problemas auditivos, mas todos são oralizados (surdos que utilizam a língua oral para se comunicar, nas modalidades oral, orofacial, também denominada leitura labial, e/ou leitura e escrita). “Tenho uma boa oralização devido à convivência com eles, mas não sabia, quando bem jovem, que eu era igual a eles”, diz Michelle, que, na primeira etapa do ensino fundamental, foi reprovada cinco vezes.

“Não entendia a razão daquilo, já que eu era assídua e caprichosa. Só mais tarde compreendi que eu não conseguia discriminar palavras como bala e mala. Naquele tempo, o português era uma disciplina bem exigente", conta. Ela concluiu os estudos na Educação de Jovens e Adultos (EJA) aos 23 anos, quando já morava em Belo Horizonte – deixou a casa da mãe aos 14.

No mesmo ano em que terminou o ensino médio, começou a ter contato com surdos sinalizadores. “Foi algo tão mágico que, em seis meses, já estava sinalizando”, rememora. Passou no vestibular de Letras/Libras da UFSC e iniciou a busca pelo “sonho de ser professora na UFMG e conseguir minhas titulações”.

Michelle formou-se em 2012 e logo iniciou o mestrado, concluído em 2015. “No mesmo ano, comecei a atuar como professora na UFJF [Universidade Federal de Juiz de Fora], mas queria muito voltar a Belo Horizonte, onde estavam meu filho [Gabriel, hoje com 20 anos] e meu companheiro. Então, me dediquei muito e fui aprovada em primeiro lugar no concurso para docente da UFMG”, conta. Em 2018, ela ingressou no doutorado.

Literatura e educação
“As conquistas e o pioneirismo da professora Michelle são motivo de muito orgulho para nossa comunidade, e ela tem assumido um protagonismo relevante em nossas políticas de inclusão”, elogia a professora Sueli Coelho, diretora da Faculdade de Letras. Sueli exalta também o fato de que o trabalho de Michelle Murta tem sido fundamental para que a Universidade contribua efetivamente para o conhecimento da Libras e para a formação de profissionais altamente qualificados para atuar na educação inclusiva.

Fora das salas de aula, Michelle se dedica ao Projeto Mãos Literárias, iniciado em 2019. A página do projeto no site da Fale abriga narrativas de surdos voluntários (histórias, piadas, poemas, lendas, todas em Libras). “A ideia é que os vídeos cheguem a muitas pessoas, também em áreas rurais, onde professores que trabalham sem recursos podem utilizar o material na educação de crianças e mesmo adultos surdos. A literatura é uma forma de garantir aos surdos acessibilidade na educação, uma vez que a Libras é uma língua que os surdos compreendem mais facilmente, pela sua visualidade”, explica a professora, que no dia a dia também usa a oralidade para se comunicar com as pessoas que não falam Libras. Ela tem memória auditiva, porque a perda da audição foi gradual.

Michelle Murta, sinalizando 'surdo':
Michelle, sinalizando 'surdo': falta de atendimento adequado em bancos e supermercados Acervo pessoal

Na visão de Michelle Murta, o processo de inserção social das pessoas surdas ainda está longe de um ponto satisfatório. “O caminho para nós é árduo. Houve conquistas, mas, em diversos aspectos, os passos ainda são lentos. Uma das questões está relacionada à difusão da Libras em locais públicos. Se vou a um banco ou a um supermercado, tenho atendimento adequado? Há funcionários que sabem Libras? Quantos policiais e bombeiros estão preparados para atender os surdos? E atendentes em laboratórios, pensando nos testes da covid?”, questiona a professora da Fale.

Ela diz que, por outro lado, a comunidade surda comemora leis que, nos últimos 20 anos, validaram a Libras e reconheceram o direito à educação e à acessibilidade. “Estamos trabalhando pela implantação da primeira escola bilíngue de Belo Horizonte, espero muito ver esse sonho se realizar”, afirma Michelle.

A recém-doutora tem mais motivos para comemorar a conclusão de mais uma etapa importante de sua formação. “Vou voltar a assistir a séries na TV e encontrar meus pares surdos para conversar e comer churrasco, se a situação sanitária permitir”, ela planeja. “Mas também gosto muito de ficar em casa", ressalva.

‘É preciso fortalecer estudos sobre Libras’

A iconicidade, tema central da tese de Michelle Murta, é um modo de representação da forma e do significado. Um exemplo simples, segundo ela, é o sinal de árvore, que é realizado com o braço estendido e a mão aberta, ao lado do corpo. O braço dá a ideia do tronco da árvore, a mão aberta transmite a ideia da copa e os dedos representam os galhos.

De acordo com a pesquisadora, sua tese – Mapeamentos icônicos na estrutura interna dos verbos em Língua Brasileira de Sinais – avança nos estudos linguísticos sobre a Libras, contribuindo para esclarecer o funcionamento dos verbos. Ela estudou a estrutura basal dos verbos, em busca da compreensão de seu comportamento na relação com outros elementos na sinalização em Libras. Ela dá um exemplo: o verbo fumar, sinalizado pelo gesto de fumar, com os dedos indicador e médio estendidos sobre os lábios, não pode ter a configuração de mão (formato da mão) alterada, porque isso implicaria mudança de significado.

Em sua pesquisa, a professora da Fale trabalha com o conceito de slots. “Pode-se pensar num prédio que tem cinco vagas de garagem, cada uma com um carro. Um slot seria como uma vaga dedicada, da qual o carro não pode ser removido. Nesse caso, a configuração de mão seria uma dessas vagas – não pode ser removida ou alterada, ainda que, por exemplo, esteja impedindo a utilização dos lábios, que têm função morfológica específica na Libras. Eles não poderão ser usados naquele sinal, já que a configuração de mão estará cobrindo a boca.

Michelle criou um teste no Google Forms com 50 verbos na Língua Brasileira de Sinais. Os participantes indicaram, classificando de 1 a 5, o grau de iconicidade de cada sinal. Para filtrar os resultados, foi utilizada a base estatística de Sperman, e o número encontrado foi quase perfeito: os dados da análise linguística e os da percepção bateram, e ficou confirmada a teoria da pesquisadora sobre os verbos da Libras.

“É importante a análise aprofundada da iconicidade na Libras, porque os leigos tendem a confundi-la com a mímica, o que desvaloriza a língua”, ressalta Michelle. Ela acrescenta que o aspecto mais relevante do seu trabalho, como pesquisadora e professora, é “a dedicação constante, junto com outros profissionais da área, ao fortalecimento dos estudos linguísticos sobre a Língua Brasileira de Sinais, à divulgação da Libras e aos esforços pelo reconhecimento da cultura e comunidade surda, com as suas especificidades e sua literatura”.

Itamar Rigueira Jr.