‘O paraíso perdido’ de José Henrique Santos
Professor Ivan Domingues analisa a obra e a trajetória do filósofo que foi reitor da UFMG na década de 1980
A ideia deste artigo é da reitora Sandra Regina Goulart Almeida, e o contexto foi a entrega do novo livro [O paraíso perdido, Edições Loyola], de autoria do meu antigo professor, José Henrique Santos, depois colega de Departamento, e reitor da UFMG no período 1982-1986 – ele fora vice-reitor na gestão 1978-1982. Hoje vive em São Paulo.
Na origem de tudo está a pandemia, com os desacertos das rotinas e as novas situações que um quadro atípico como este proporciona. Por um lado, meu ex-colega, e depois amigo, concluiu, em plena crise sanitária, o livro que consumiu anos de investigação paciente em circunstâncias pessoais nada favoráveis – obra que agora, enfim, vem a lume, para sua satisfação e alegria de todos nós. Por outro lado, a greve dos Correios inviabilizou a circulação do livro, já dificultada pela impossibilidade de realização de evento presencial para lançamento em razão dos protocolos de distanciamento social. Assim, eu me entendi com o autor para fazer a obra chegar à mão dos amigos e pessoas do meu convívio em Belo Horizonte. Tal foi o caso da professora Sandra Goulart Almeida, a quem procurei, depois de combinado, num sábado à tarde há cerca de dois meses. Esse foi o contexto da encomenda deste artigo, motivada pelo nobre desejo da reitora de homenagear o ex-reitor e grande intelectual que é o professor José Henrique Santos.
Antes de apresentar o livro e considerando a situação atual da Universidade, que teve seu corpo docente fortemente alterado nas duas últimas décadas, será oportuno traçar o perfil de José Henrique Santos como educador e intelectual. Um e outro se somam nas contribuições que mudaram o destino da UFMG. Além de sumamente dedicado à filosofia, em sua vocação universal – como a matemática –, mas aplicada em contextos específicos e na dinâmica das instituições, José Henrique sempre se mostrou preocupado com a situação do nosso país nos planos cultural e político: polarizado, excludente, acometido por profunda crise de identidade e pela dificuldade de dizer “nós”.
Um e outro [educador e intelectual] estão unidos em um mesmo indivíduo profundamente envolvido com o destino da UFMG, além de sumamente preocupado com a filosofia em sua vocação universal.
Sobre José Henrique Santos como educador, e aqui eu incluo as atividades de ensino e as funções administrativas, desde o Departamento até a Administração Central, eu ressaltaria duas coisas.
No plano das atividades de ensino, com base em minha experiência pessoal (fui aluno de José Henrique em mais de uma ocasião nos tempos da antiga Fafich, na Rua Carangola, 288), eu destacaria o papel do ex-colega como aquele que cristalizou e levou mais longe a figura do scholar entre nós. Ou seja: o especialista disciplinar, como poderia ser chamado, ao fazer a transição da época heroica da fundação do Departamento e da velha Fafi, comandada pelos autodidatas, como, aliás, em outros pontos do país, para a nova geração na qual eu me incluo, assim como outros colegas, até chegar aos dias de hoje.
Considero esse ponto essencial e já tive a ocasião de tratar dele em outras publicações. Distingo o scholar de tipo 1, ultraespecializado e insulado, que vigora em todos os meios da universidade, e o de tipo 2, dedicado a seu campo disciplinar como todos os scholars, mas com horizontes mais vastos, somando à especialidade vertical uma grande erudição horizontal, situação que possibilitará ao filósofo e ao professor a circulação em mais de uma área. Essa figura mais rara, que faz lembrar o antigo polímata, está hoje ameaçada de extinção devido ao produtivismo. Entre os scholars de tipo 2, eu inscrevo José Henrique, com sua cultura espantosa e expertise diversificada.
No plano das atividades administrativas, ressaltaria as suas ações no Departamento como sucessor do mitológico Arthur Versiani Vellôso, fundador da velha Faculdade e da Seção de Filosofia. O herdeiro de Vellôso iniciou a profissionalização do Departamento e marcou as suas atividades, em termos de política departamental, com duas principais diretrizes: [i] a ampliação das ações do Departamento e de seus encargos didáticos na direção de outros departamentos da Fafich e de outras faculdades ou escolas, com destaque para o Primeiro Ciclo de Ciências Sociais, além de outras frentes, estrategicamente implantadas para vencer as ameaças de fechamento, nos anos difíceis em que o país vivia – eram os “anos de chumbo”; [ii] a implantação da pós-graduação, iniciada quando era chefe de Departamento, que resultou na incorporação de novos colegas, depois de concluírem seus PhDs em Lovaina, na Bélgica, além de outras iniciativas.
Na mesma linha, na Administração Central, iniciada em comitês e assessorias e continuada com suas ações como reitor e vice nos anos 1970 e 1980, período em que o país ensaiava os primeiros passos da abertura política, vencendo os anos de chumbo até chegar ao movimento das Diretas-já, ao qual a Universidade em seus diferentes segmentos se associou. Foram tempos difíceis, com muita pressão política da ditadura militar e uma ministra da educação, Esther de Figueiredo Ferraz, autoritária e intervencionista. Do ponto de vista acadêmico, aqueles tempos foram marcados pela implantação e expansão da pós-graduação nos diferentes segmentos da UFMG.
Mais do que um administrador, José Henrique é um intelectual de grande envergadura, e nada mais natural que essas ações tenham dado ensejo a várias publicações, como papers, livros e relatórios, alguns de acesso difícil, mas que fazem parte de sua memória pessoal e da própria Universidade. O mais antigo, que remonta aos anos 1960, é o livro Plano de reforma da UFMG, escrito em parceria com Hugo Amaral, sob a supervisão do então reitor, professor Aluísio Pimenta, e publicado pela Imprensa Universitária, em 1967. Na sequência, vieram os artigos Atualidade e perspectiva da universidade brasileira (Suplemento de Ciência e Cultura da SBPC, v. 37, n.7, p. 211-219, 1985), Democratização da universidade (publicado em Educação Brasileira, v. 16, n.7, p. 19254-24086, 1986) e A universidade e a cultura brasileira (Revista Síntese, n.49, p. 15-28, 1990, e Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 71, p. 83-100, 1990). Some-se ainda o capítulo Sobre o ensino das humanidades (in: Célio da Cunha et al. [Org.]. Ensino das humanidades. A modernidade em questão, Ed. Cortez, 1991, p. 119-129). Para terminar, havendo ainda outras referências, o estudo Seminário sobre o ensino superior (2 volumes, 1977, p. 349-357), que veio a lume no Painel sobre o ensino das Ciências Humanas, organizado pela Câmara dos Deputados.
Mais do que um administrador, José Henrique é um intelectual de grande envergadura, e nada mais natural que essas ações tenham dado ensejo a várias publicações, como 'papers', livros e relatórios, alguns de acesso difícil, mas que fazem parte de sua memória pessoal e da própria Universidade.
Penso que é o bastante. Ressalte-se nesse elenco sua preocupação com o ensino das humanidades, matéria hoje de grande atualidade depois de tantos ataques da atual Administração do MEC. Entendo que tudo isso deveria fazer parte, para consulta pelos estudiosos, de um acervo especial vinculado a uma espécie de Centro de Estudos Estratégicos do Ensino Superior, com escopo mais amplo do que a UFMG, pensado como órgão assessor da Reitoria e dos conselhos superiores da Universidade – houve algo incipiente do gênero no passado; hoje não mais.
Sobre José Henrique como pensador e intelectual, creio que a melhor maneira de aferir seu importante legado – desconhecido das novas gerações – é considerar os principais livros que publicou e os títulos universitários e acadêmicos que lhe foram concedidos ou que ele se fez merecer.
Dos livros que são de sua lavra: Do empirismo à fenomenologia – A crítica antipsicologista de Husserl e a ideia da lógica pura, publicado em Braga (Portugal) pela Livraria Cruz, em 1973, e republicado pela Loyola em 2010, Elogio acadêmico de Arthur Versiani Vellôso (Belo Horizonte: Edição do Autor, 1992), Trabalho e riqueza na fenomenologia do espírito de Hegel (São Paulo: Edições Loyola, 1993), O trabalho do negativo – ensaios sobre a fenomenologia do espírito (Loyola, 2007) e o recente O paraíso perdido – ensaios de reconciliação, também pelas Edições Loyola.
Evocando o famoso título Paraíso perdido, do poeta britânico John Milton, ao qual dedica dois capítulos, o terceiro e o quarto, e a quem ele volta no último capítulo na sua segunda obra, Paraíso reconquistado, o livro versa sobre os três conhecidos eixos que notabilizaram a produção filosófica de José Henrique Santos – ética, política e cultura –, aos quais se soma um quarto eixo, a filosofia da religião – esta é a novidade – e, a exemplo de obras anteriores, tendo Hegel, a dialética e sua filosofia como chave e porta de entrada.
Entre os temas desenvolvidos, o meu preferido é Brava gente brasileira, motivado pelas celebrações dos 500 anos do descobrimento de nossas terras pelos portugueses, que resultou em um país profundamente cindido, com um projeto de nação indefinidamente adiado e culturalmente definido pela dificuldade em dizer “nós”, como o leitor descobrirá na seção consagrada ao assunto.
José Henrique explora o gênero literário da ensaística filosófica (o livro é composto de 11 ensaios) e, em todos, comprova seu talento de escritor – além de ser pensador brilhante, ele escreve bem e, não sem razão, é membro da Academia Mineira de Letras.
Também chama a atenção um conjunto de ensaios notabilizados por grande erudição histórica, um verdadeiro luxo, e títulos surpreendentes, como em Crestomatia arcaica, que é o outro nome para florilégio, com o subtítulo Sobre a utilidade do inútil, no qual o florilégio é composto da falcoaria, da geometria, da ficção, da música, da religião, da filosofia e de uma incômoda pergunta: Para que mais filosofia?
Destacaria também temas clássicos da filosofia, alguns em chave metafísica e outros em chave ética, com Hegel ao fundo, como no capítulo 2 (Os dois princípios da mediação absoluta), no 7 (Ética e medida) e no 11 (O mal e seu perdão). Para concluir, menciono os ensaios históricos com viés político, como no capítulo 1 (Auschwitz ou os limites da razão), no qual ele retoma o livro clássico de Primo Levi e o expande na direção das fronteiras da filosofia com a teologia (Deus ausente), além dos surpreendentes e criativos ensaios de filosofia da cultura. Dois são especiais: Sobre jogos e ditos espirituosos, que explora metáforas, alegorias, chistes, trocadilhos e situações mundanas, e Os paraísos artificiais, em que fala de De Quincey, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Freud e a questão das drogas (eles próprios como usuários), como a cocaína, o haxixe, o absinto, o ópio e os spirits legalizados como o vinho. O contraponto, como evoca o título, é o livro famoso do próprio John Milton e o drama bíblico.
Por fim, há o prólogo, uma pequena obra-prima, iniciado com um episódio que se passa no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte.
Concluo com breves referências às homenagens e aos títulos acadêmicos conferidos a José Henrique Santos: a sua eleição para a Academia Mineira de Letras, em 1992, ocupando a cadeira de Arthur Versiani Vellôso, a Festschrift, publicada em 2002 pela Editora UFMG em sua homenagem, com o título Ética, política e cultura, organizada por Paulo Margutti, Rodrigo Duarte e por mim, e o título de Professor Emérito conferido pela Egrégia Congregação da Fafich ao ilustre colega e mestre de todos nós, cuja Laudatio eu tive a honra de proferir no dia 14 de setembro de 2019 e que foi reproduzida na Revista Kriterion (v. 51, n. 121, Jan. 2010).
Nas duas últimas ocasiões, no âmbito da UFMG, a circunstância de José Henrique ter nascido em Paracatu foi evocada. Na primeira, para homenagear o eminente filósofo das Montanhas, mas com berço nos Gerais. Na segunda, para lembrar que José Henrique era uma cabeça coroada, com uma carreira brilhante reconhecida por todos, levando-nos a dizer que “os cascalhos do norte de Minas escondiam um verdadeiro diamante”: antes, em estado bruto; depois, polido pela faculdade, pela vida e pela filosofia.