Opinião

O sentido da vida e o coronavírus

Professor Paulo Evangelista, do Departamento de Psicologia da Fafich, reflete sobre a crise existencial deflagrada pela pandemia

Jovem em isolamento social:
Jovem em isolamento social: "a pandemia revela que estamos todos conectados"Reprodução TV UFMG

O momento que vivemos é muito propício para crises existenciais, e isso não é necessariamente ruim. Pelo contrário: crise existencial é uma interrupção na trajetória que nossa vida trilhava. Ao impedir a continuidade, ela traz à tona aspectos que permaneciam ocultos no cotidiano e convoca-nos a novos posicionamentos e direcionamentos em nossa vida. Convida-nos a imaginar novos futuros.

Estamos impedidos – por imposição do mundo e/ou por escolha pessoal – a seguir nosso cotidiano como acontecia até fevereiro. Muitos de nós descobrimo-nos sozinhos. Outros estão obrigados a conviver com muitas pessoas, apertados, sem privacidade, até mesmo tendo que conviver com quem não se dão bem. Muitos lugares que frequentávamos estão fechados. Não podemos mais ver as pessoas que encontrávamos. O ritmo de vida que tínhamos e que regulava nossas atividades, nós o perdemos. Podemos nos sentir perdidos com essa quebra. O que fazer? Aonde ir? Com quem falar? Afinal, respostas a essas perguntas já estavam dadas pelo nosso cotidiano. O que vivemos atualmente revela para nós o quanto podemos viver irrefletidamente, cumprindo nossos afazeres do dia a dia, até esquecidos do porquê e do para quê nos conduzimos assim.

A pandemia também é reveladora de um aspecto da vida que costumeiramente deixamos de olhar: que podemos perder as pessoas que amamos e que nós mesmos podemos morrer. Agora, o agente desse mal é o coronavírus, mas ele não é o único. Muitas doenças levam à morte. Vulnerabilidade social também – e ela agrava a vulnerabilidade ao coronavírus. Basta estar vivo para poder morrer, diz um ditado. Mas não levamos isso em conta quando seguimos nossa rotina diária e corremos em busca do nosso futuro. Por isso, é normal que sintamos medo. Tememos por nós mesmos, por nossa família, por nossos amigos e pela comunidade em geral. Se você está se sentindo assim, escute seu medo, pois ele pode revelar o que e quem são importantes.

Temos ficado em casa para evitar a contaminação. A pandemia revela que estamos todos conectados. Meus atos necessariamente têm consequências para as outras pessoas de minha comunidade, quer as conheça ou não. Posso estar infectado e não apresentar sintomas, mas contamino outras pessoas que podem não ter a mesma sorte. Ou seja, meus hábitos podem levar outros à morte. Quando foi que perdemos esse senso de comunidade? A pandemia solapa nossas concepções individualistas.

É normal que sintamos medo. Tememos por nós mesmos, por nossa família, por nossos amigos e pela comunidade em geral. Se você está se sentindo assim, escute seu medo, pois ele pode revelar o que e quem são importantes.

Interrompendo planos e cotidianos, descubro que a vida não é exatamente como eu queria que ela fosse. Há um jogo de forças entre dar um rumo à minha vida e ela me impor caminhos. Lida melhor com esse jogo quem tem mais flexibilidade. Aquele que tenta obrigar a vida a seguir seus planos tende a se frustrar neste momento. E, se acreditava que podia fazer de si o que bem quisesse, descobre-se também impotente, dando murro em ponta de faca. Mais do que flexibilidade – aqui compreendida como capacidade de adaptação –, o necessário agora é a capacidade de reconhecer na adversidade a potencialidade de crescimento. Isto é, que esse momento desafiador é capaz de revelar aspectos nossos e dos outros que antes não percebíamos e abrir futuros que não imaginávamos.

A Psicologia Existencial costuma convidar as pessoas a escutarem o que a vida pede. Às vezes, o que posso não é o que eu queria ou planejava. Escute este momento. Escute-se neste momento. É hora de obrigar-se a seguir os planos como se nada estivesse acontecendo ou reconhecer e desconsiderar o que está acontecendo, ou parar e rever trajetórias?

A pandemia convoca-nos a refletir sobre o que vale a pena nas nossas vidas neste momento. É o que a Psicologia Existencial chama de sentido da vida. O que estávamos fazendo e vivendo nos realizava? Eu estava próximo dos outros de maneira correspondente a como me sinto na relação com eles? Que participação tive no caminho que me trouxe até o lugar e o momento atuais? Fui fazendo escolhas ou deixei que outros (determinados ou indeterminados) escolhessem por mim. Tenho sido quem eu posso ser ou quem os outros esperam ou obrigam-me a ser? Essas são algumas das perguntas que este momento nos convoca a fazer e que precisamos deixar que se apresentem na nossa vida. Pergunte-se: o que estou fazendo faz sentido para mim neste momento? Quem estou sendo está fazendo sentido para mim neste momento?

A questão não é estar feliz ou buscando a felicidade. A realização das próprias potencialidades muitas vezes é um desafio e envolve escolhas, as quais exigem renúncias, isto é, que se abra mão de outras situações e relações que poderíamos viver. A clareza de que o que estamos realizando faz sentido contribui para que o que foi deixado de lado não seja vivido somente como uma perda. Por exemplo: ao escolher permanecer em casa, contribuo para que os mais vulneráveis que venham a precisar de serviços médicos os tenham à disposição e, assim, estou cuidando para que eu tenha mais possibilidades de encontros com as pessoas das quais deixo de estar junto agora. 

Pergunte-se: o que estou fazendo faz sentido para mim neste momento? Quem estou sendo está fazendo sentido para mim neste momento?

Ao escutarmos o que nossa vida pede de nós neste momento, podemos descobrir novos aspectos sobre nós mesmos. Essa experiência também pode ser assustadora. Mas leva ao autoconhecimento e ao crescimento. E o que fazer com o que for aparecendo? Que tal anotar, guardar para si, revisitar de vez em quando e perguntar-se: ainda faz sentido isto que pensei sobre mim mesmo?

Procure outras pessoas e busque convivência tal como está sendo possível agora. Se só puder ser contato virtual, que seja. Enquanto estamos sozinhos, nossos diálogos com nós mesmos podem ser tão reveladores quanto produzir vertigem. Ao conversar com outras pessoas, consigo recolocar os pés no chão, pesar e/ou relativizar algumas percepções e conclusões. Sozinho, cresce minha sensação de que só eu estou enfrentando este momento dessa forma. Ao conversar com outros sobre como estou me sentindo, posso descobrir que estamos todos no mesmo barco. E isso é reconfortante.

Você também pode buscar ajuda especializada para conversar sobre o que está se descortinando na sua vida; os psicólogos são treinados para isso, e, atualmente, há vários serviços de atendimento psicológico on-line disponíveis. Ou seja, não precisa tomar nenhuma decisão drástica neste momento – a menos que você sinta que a escolha vale a pena agora.

A pandemia vai passar, mas nós não sairemos dela iguais. Podemos sair mais aterrorizados ou mais conscientes e responsáveis por nós mesmos e pelos outros ao nosso redor.

Paulo Eduardo R. A. Evangelista / professor do Departamento de Psicologia da UFMG