[Opinião] Raças crioulas e soberania alimentar: a conservação do porco piau em Minas
Professor da Escola de Enfermagem destaca importância da espécie para a alimentação das comunidades e o valor, para sua produção, da diversidade vegetal das pequenas propriedades
O conceito e as práticas que consolidam a soberania alimentar são partes integrantes das políticas de promoção do direito humano à alimentação. O documento do Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar realizado em Havana, em 2001, o define como sendo o “[...] o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental […]. A soberania alimentar é a via para se erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos os povos”.
Quanto à “raça localmente adaptada ou crioula”, a legislação brasileira a define como “raça proveniente de espécie que ocorre em condição natural própria ou mantida fora desta condição, representada por grupo de animais com diversidade genética desenvolvida ou adaptada a um determinado nicho ecológico e formada a partir de seleção natural ou seleção realizada adaptada por população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional”.
Dessa forma, no caminho rumo à soberania alimentar, uma das práticas fundamentais é a preservação do patrimônio genético de espécies biológicas que tradicionalmente ocorrem em diferentes regiões. Essas espécies, vegetais e animais, são frutos de processo adaptativo de longa duração e representam um recurso seguro para fornecer comida às populações desse mesmo ambiente.
Recentemente, foi aprovado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em primeiro turno, o projeto de lei 3.892/2022, que reconhece como de relevante interesse social e econômico do estado a criação da raça porco piau, uma raça crioula, também conhecida como caipira, originária dos primeiros suínos introduzidos no Brasil pelos europeus no século 16. A preservação dessa raça, extremamente adaptada e resistente, só se tornou possível por conta da perseverança de agricultores familiares que mantiveram um sistema de produção do animal em suas pequenas propriedades. Essa prática possibilitou que esses agricultores, com apoio de técnicos especializados, desenvolvessem um sistema de produção caipira para o porco piau. Esse sistema, por sua vez, se conecta com a biodiversidade vegetal das pequenas propriedades, que é base de alimentação das raças crioulas. O porco cumpre o papel ambiental de contribuir na ciclagem de nutrientes dentro do sistema. O esterco é uma fonte de nutrientes para a produção vegetal, e isso se integra com os demais sistemas produtivos da propriedade rural. Tal integração gera viabilidade econômica, ambiental, cultural, política e social.
A preservação dessa raça [o porco piau], extremamente adaptada e resistente, só se tornou possível por conta da perseverança de agricultores familiares que mantiveram um sistema de produção do animal em suas pequenas propriedades
Os dois temas em questão, soberania alimentar e raças crioulas, têm sido cada vez mais acolhidos no âmbito da UFMG, onde duas iniciativas recentes estão diretamente conectadas a eles: a criação da Rede de Agricultura Familiar e Agroecologia (Rafa) e a Formação Transversal em Agricultura Familiar e Agroecologia, que está sendo ofertada pela primeira vez neste primeiro semestre de 2024. A Rafa insere-se na política de formação de redes da Universidade, envolvendo movimentos da sociedade que lutam por causas que representam os segmentos invisibilizados e vulnerabilizados da sociedade. A formação em rede, com ampla participação de representantes das comunidades externas, traz para a UFMG vozes e atores importantes, revelando o compromisso da Universidade com a transformação social em favor da redução das desigualdades. Ao se direcionar para o debate institucional da “agricultura familiar” e “agroecologia”, dois temas contra-hegemônicos no meio rural, a Rafa contribui para pôr o ambiente universitário em contato com diversos atores sociais que manifestam anseios e necessidades das populações do campo, notadamente aquelas que não se alinham ao modelo dominante de agricultura, o agronegócio.
Desse ponto de vista, cabe destacar que a questão social no meio rural brasileiro se faz mais grave dados os cenários de exclusão educacional, devastação ambiental, uso indiscriminado de corretivos e adubos químicos, exclusão dos agricultores familiares dos mercados, carência de assistência técnica, que, entre outros, são de extrema importância, sobretudo considerando o papel da agricultura familiar e da agroecologia na promoção do direito humano à alimentação saudável e adequada. Nesse sentido, a Rafa contribui para a construção de políticas públicas que de fato ajudem a fortalecer a agricultura familiar e a agroecologia, em prol de novos compromissos com a produção agropecuária e as populações do campo.
Quanto à segunda iniciativa, as Formações Transversais são “conjuntos de atividades acadêmicas, organizadas segundo estruturas curriculares, que visam abordar temáticas de interesse geral, incentivando a formação de espírito crítico e de visão aprofundada sobre esses temas”. O sistema de formações transversais constitui um espaço comum de formação para os estudantes de todos os cursos de graduação da UFMG. A proposta dessa nova formação origina-se dos debates temáticos, no âmbito da Rafa, envolvendo agricultura familiar e agroecologia, ambos os temas absolutamente comprometidos não apenas com a segurança e soberania alimentar, como também com a conservação de raças crioulas como patrimônio genético alimentar nacional. Ao instituir essa formação transversal, o objetivo da UFMG é criar estrutura de formação que possibilite aos estudantes o contato com diversos saberes, visões das diferentes áreas do conhecimento e intervenções que se relacionam à temática da agroecologia e à da agricultura familiar, como componentes do rural, dos saberes tradicionais e da produção sustentável de alimentos no campo e na cidade.
Assim, o referido projeto de lei, que reconhece como de relevante interesse social e econômico do estado a criação da raça porco piau, constitui marco para os movimentos envolvidos com a promoção da segurança e soberania alimentar, porque mobiliza outros agentes a reivindicar o mesmo reconhecimento para outras raças crioulas. O envolvimento da UFMG nesse movimento se dá não apenas pelos mecanismos do ensino, da pesquisa e da extensão, mas também pelo fomento do debate social capaz de fortalecer as políticas públicas de promoção da soberania alimentar e da conservação e proteção das raças crioulas, patrimônio genético adaptado ao clima, à alimentação e aos manejos dos sistemas de produção de cada comunidade em cada ponto do território nacional.
(José Divino Lopes Filho, professor do Departamento de Nutrição da Escola de Enfermagem da UFMG e coordenador da Rede de Agricultura Familiar e Agroecologia
Filipe Russo, técnico agrícola, guardião do porco piau e membro da coordenação da rede)