Opinião

[Opinião] Manuelzão, Rio das Velhas

Os caminhos e o legado de Manuel Nardi, vaqueiro eternizado por Guimarães Rosa e patrono do Projeto Manuelzão

O vaqueiro Manuel Nardi, na segunda metade da década de 1990, com o filho de Apolo Lisboa. Para o autor do artigo, a imagem simboliza a gênese do Projeto Manuelzão, lançado em 1997
O vaqueiro Manuel Nardi, na segunda metade da década de 1990, com o filho recém-nascido de Apolo Lisboa. Para o autor do artigo, a imagem simboliza a gênese do Projeto Manuelzão, que iniciou suas atividades em 1997 Foto: Apolo Lisboa

Em 1952, Guimarães Rosa viajou pelo sertão com um caderno onde anotava tudo que via: nome de bicho, planta, riacho, raça de gado, canções populares. Antes dessa expedição, ali, na fazenda do primo, saudoso na Itália da vida de menino, ele conheceu o vaqueiro Manuel Nardi, o Manuelzão, que o inspirou a escrever o livro Estória de amor.

A estória se passa na “Samarra que não era nem fazenda era só um reposto, um curral de gado, pobre e novo ali entre o Rio e as Serras-dos-Gerais”. E gira em torno de uma festa de sagração de uma capelinha tosca a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que Manuelzão fez construir a pedido da falecida mãe. O evento atraiu muita gente dos arredores, e até o padre viajou algumas léguas para satisfazer o desejo do Manuelzão de rezar a missa na nova capela onde enterrara sua mãe, substituindo o bispo de Felixlândia, que não quis ir alegando que o direito canônico exigia doar a terra da capelinha, e Manuelzão não era o proprietário. Mas, na noite anterior à festa, ocorreu um evento inusitado, coisa profética: “o riacho que abastecia a casa secou”.

E aí “cada um sentiu no coração o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho […] o riacho soluço se estancara, sem resto e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana, era como se um menino sozinho tivesse morrido”.

Manuelzão nasceu no distrito de Saúde, hoje Dom Silvério, na Zona da Mata Mineira, e só conheceu o sertão e as veredas mais tarde, quando o destino o encaminhou ao grande sertão e às águas do São Francisco, com seus peixes, pessoas e histórias. Foi por acidente de percurso. Em desespero existencial, após romper um noivado com uma prima, subitamente tomou o rumo de São Paulo aos 28 anos, quando, no caminho, já em Carandaí, conheceu o fazendeiro de Pirapora José Drummond Figueiredo, apelidado de Boca Preta por causa de uma mancha escura no rosto. O criador e comerciante de gado e tropas, homem rico e trabalhador, convenceu Manuelzão a ajudá-lo a levar as mercadorias até Pirapora, via Cordisburgo, onde embarcariam os animais num trem até o destino. E nesse acaso Manuel Nardi encontrou o que queria na vida e deixou de lado a ideia de ir para São Paulo.

Após a morte do Boca Preta, Manuel Nardi foi trabalhar com Chico Moreira, fazendeiro primo de Guimarães Rosa, que tinha uma fazenda na barra do rio de Janeiro, na Silga, perto de Andrequicé, encostada no São Francisco. Corguinho de nada o filete só engrossava em janeiro quando a cheia do Velho Chico o barrava com força e o fazia tomar respeito e nome de rio.

Inteligente, astuto e forte, Manuelzão criou uma lenda em torno de si. Entusiasmou João Rosa e entrou na literatura mundial. Manuelzão e Guimarães Rosa lembram o sertão preservado em sua natureza e em sua cultura colonial. Evocam um mundo que foi se alterado com a chegada da tecnologia, da poluição e do eucalipto, exterminando veredas e histórias. Manuelzão dizia que tinha sorte com rosa: sua mãe era Rosa Amélia e João Rosa, como se referia ao escritor, foi quem o projetou. Ele se encantava com a própria capacidade de atrair as pessoas – “parece que tenho um imã”, dizia.

Considerava João [Guimarães Rosa] um chato a lhe incomodar com perguntas o tempo todo, sobre nome de passarinhos, plantas e riachos, que anotava num caderninho, pedindo para contar histórias e atrasando a viagem. Nunca imaginara que aquele João Rosa, primo do dono da fazenda a quem servira como vaqueiro, ficaria tão famoso após a morte súbita.

Brincalhão, falava que gostava das novas, que lhe alisavam as barbas, mas que não desgostava das velhas, pois sem as velhas não haveria as novas! Considerava João um chato a lhe incomodar com perguntas o tempo todo, sobre nome de passarinhos, plantas e riachos, que anotava num caderninho, pedindo para contar histórias e atrasando a viagem. Nunca imaginara que aquele João Rosa, primo do dono da fazenda a quem servira como vaqueiro, ficaria tão famoso após a morte súbita. Com a morte do escritor, rapidamente jornalistas começaram a chegar ao sertão para conhecer Manuelzão e os outros vaqueiros.

Manuelzão amou o sertão e não aceitava a destruição dos seus ecossistemas. Na bacia do rio das Velhas, além dos municípios de Buenópolis, Corinto e Cordisburgo, onde fixou morada, transitou por toda parte, de Goiás até a Bahia, até passando por Salinas, uma das minhas terras, várias vezes indo e vindo no lombo de burro. Contava muito das festas na parada na Vacaria, terra dos pretos com papo, passando ali e indo até Itabuna pela boiadeira. Por isso, atribuía à capital de Minas Gerais a razão de tanta poluição das águas do mais importante afluente do São Francisco.

Em 1932, cruzara o rio das Velhas em Belo Horizonte e guardava dele uma imagem muito positiva. Quando Manuelzão voltou ali em 1995, já tinha quase 90 anos. Tínhamos nos encontrado pela primeira vez naquele ano, em Andrequicé, onde ele vivia. Do conhecimento à amizade e ao engajamento no movimento pelo rio foi um passo, um sonho de fecunda realidade. Ele se assustou quando viu o que havia se tornado o rio das Velhas nas imediações da capital, onde o mau cheiro exalava e os peixes boiavam mortos, deformados, cheios de doenças.

Em 1990, um projeto com o objetivo de trazer os peixes de volta ao rio foi apresentado na UFMG. Projeto Rio das Velhas era seu nome. Mas só conseguimos reunir e articular os esforços para iniciar a sua operação em 1997. Nesse meio tempo, tomei contato com Manuel Nardi em Andrequicé, junto com estagiários do Internato Rural da Faculdade de Medicina, comendo um galo velho cozido toda a noite, tomando uma pinga em torno de suas estórias. Foi tudo muito rico e inspirador. Com a amizade surgida casualmente em conversas e viagens o convidei para patrono, uma sincera homenagem, e o projeto passou a se chamar Manuelzão. O grande presente que recebeu em vida e o fez muito feliz, e a nós todos.

Artigo publicado originalmente na Revista Piseagrama, em 2013, revisado para a próxima edição da Revista Manuelzão. Leia a versão versão original.

Apolo Heringer Lisboa | professor da Faculdade de Medicina e idealizador do Projeto Manuelzão