Opinião

Para que servem as universidades?

Em artigo, reitora mostra que a UFMG contribui, desde o primeiro momento, com a formulação de respostas para a pandemia

Equipe do Laboratório de Vírus é um dos vários grupos da UFMG envolvidos no combate à Covid-19
Equipe do Laboratório de Vírus é um dos vários grupos da UFMG envolvidos no combate à Covid-19 Arquivo Laboratório de Vírus / UFMG

Nos tempos que hoje costumamos chamar de “normais”, acreditamos que as pessoas em Minas Gerais se sentiam confortáveis por saberem que o estado conta com um conjunto de excelentes instituições de ensino superior, e que isso faz diferença para a nossa sociedade. Nem sempre percebemos, mas o mundo à nossa volta funciona porque nele atuam fisioterapeutas, professores, arquitetos, médicos, enfermeiros, escritores, químicos, historiadores, engenheiros, músicos, fonoaudiólogos, economistas, filósofos, jornalistas, biólogos, entre tantos outros profissionais. Essa sensação começa, embora não termine aí, na percepção de que muitos de seus cidadãos e cidadãs terão a alternativa de escolher um curso e obter uma formação de qualidade e relevância, o que lhes abrirá a possibilidade de seguir trajetórias profissionais diversas, capazes de produzir impactos significativos no mundo em que habitamos.

Eis que, de repente, os tempos já não são “normais”. Uma pandemia como não se via há cem anos se espalhou pelo planeta, e as chaves de interpretação do mundo que cada um de nós desenvolveu ao longo da vida já não são suficientes para entender o que está acontecendo hoje, nem para prever o dia de amanhã, menos ainda para traçar estratégias para um caminhar seguro. 

Nesses momentos, a humanidade depara com a sua vulnerabilidade e sua fragilidade diante de um “inimigo" invisível, desconhecido e tenaz. A sensação de insegurança se transmuta em certo conforto ao sabermos que, em nossas universidades, há de prontidão pesquisadores de todas as áreas do conhecimento, qualificados nos quatro cantos do mundo, a quem recorremos sempre que precisamos responder a novas perguntas, suscitadas por uma realidade em permanente transição.

Correspondendo à confiança da população do estado, a Universidade Federal de Minas Gerais se fez presente desde o primeiro momento para contribuir com a formulação de respostas à situação inesperada. Antes ainda de Minas Gerais registrar o primeiro caso de Covid-19, o Hospital das Clínicas já coletava informações geradas, principalmente na China, sobre condutas terapêuticas que deveriam ser adotadas com os pacientes da doença, e já procurava compartilhar esse conhecimento com a rede hospitalar mineira. As unidades de saúde de alta complexidade da UFMG, os Hospitais das Clínicas e o Risoleta Tolentino Neves, têm participado diretamente do esforço para salvar vidas, disponibilizando a qualidade de suas estruturas de referência para o acolhimento dos casos mais graves.

A sensação de insegurança se transmuta em certo conforto ao sabermos que, em nossas universidades, há de prontidão pesquisadores de todas as áreas do conhecimento, qualificados nos quatro cantos do mundo, a quem recorremos sempre que precisamos responder a novas perguntas, trazidas por uma realidade em permanente transição.

Tão logo o primeiro caso de Covid-19 foi notificado em Minas Gerais, a UFMG estruturou um comitê de prevenção e enfrentamento, com a participação de especialistas que se reúnem diariamente para analisar os dados epidemiológicos e acompanhar novas demandas, estabelecendo interlocução com o poder público do município e do estado. Assim que pesquisadores chineses divulgaram as primeiras informações sobre o genoma do novo vírus, laboratórios da UFMG se prepararam para a realização de testes para o seu diagnóstico. 

No mesmo momento em que centros como o Imperial College, no Reino Unido, divulgavam projeções sobre as possíveis consequências do avanço da epidemia na Europa, grupos da UFMG já utilizavam técnicas matemáticas semelhantes para realizar projeções adaptadas à realidade do nosso estado, que auxiliaram e auxiliam o poder público a tomar as medidas de contenção necessárias ao enfrentamento da pandemia. 

Estudos da UFMG também possibilitaram identificar rapidamente os prováveis gargalos na rede de atendimento hospitalar diante de cenários prováveis de propagação da Covid-19, subsidiando o poder público com informações para a análise dos cenários, para a definição de ações, para a resolução de problemas ou revisão de estratégias.

Laboratórios da UFMG que pesquisam fármacos estão, neste momento, empenhados na tarefa coletiva de toda uma comunidade internacional de pesquisadores que busca desenvolver medicamentos eficazes contra o vírus. Trata-se de esforço que envolve conhecimento altamente especializado, só existente em algumas centenas de instituições mundo afora, na medida em que alguns milhares de novos compostos são testados antes que um único medicamento simultaneamente eficaz e seguro seja encontrado.

O compromisso ético e social da nossa Instituição, que se orgulha de ser um dos patrimônios do nosso estado, é o mesmo. A UFMG não se transformou, ela se fez ainda mais ativa e necessária porque o momento assim exige.

Um conjunto ainda menor de laboratórios mundo afora tem capacidade instalada para o desenvolvimento de vacinas. Uma dessas cerca de 200 instalações que correm contra o tempo e aprimoram protocolos na busca por uma vacina contra o vírus da Covid-19 encontra-se na UFMG. Seu desenvolvimento é de grande importância, uma vez que os conhecimentos obtidos pela aplicação de diferentes abordagens acabarão sendo úteis para a humanidade, em especial no caso desse novo vírus que, provavelmente, estará presente em nosso meio por algum tempo.

A Covid-19 trouxe uma série de novas questões, primeiramente relacionadas com o estudo de saúde humana, de virologia, de infectologia e de epidemiologia. Seu impacto, no entanto, rapidamente extrapolou esses domínios, transformando nosso modo de vida, nossos hábitos, nossa organização social e afetando todos nós, cada um de uma maneira diferente. A UFMG rapidamente se mobilizou, por meio de todas as áreas do conhecimento, para atuar no monitoramento e na proposição de ações visando proteger principalmente as comunidades mais vulneráveis. Temos abordado ainda questões que surgem relacionadas, por exemplo, à saúde mental, aos direitos humanos, à produção de informações para diferentes públicos, e muitas outras iniciativas.

A UFMG intensamente engajada no enfrentamento da nova pandemia, que atua em frentes em todas as áreas do conhecimento, não é distinta da Universidade dos “tempos normais”. O compromisso ético e social da nossa Instituição, que se orgulha de ser um dos patrimônios do nosso estado, é o mesmo. A UFMG não se transformou, ela se fez ainda mais ativa e necessária porque o momento assim exige.

Este é um daqueles momentos críticos, que trazem sofrimento para toda uma população, mas que certamente passará. Quando a crise acabar, ficará na memória a capacidade que demonstramos de permanecer de pé e de escolher o nosso destino. Em 1918, ano em que a jovem capital das Minas Gerais enfrentou a sua primeira grande crise com a pandemia da gripe espanhola, a nossa Escola de Medicina transformou suas instalações em um hospital provisório com 112 leitos e nove enfermarias. Os nossos professores, servidores técnico-administrativos e estudantes atuaram ali, acolhendo a população mais vulnerável, e se mobilizaram também para prestar serviços em vários postos de atendimento que tiveram de ser improvisados por toda a cidade. Hoje não é diferente: fazemos o que se espera de nós, para que, daqui a 100 anos, o povo de Minas continue a saber que pode contar com sua universidade, a Universidade Federal de Minas Gerais, qualquer que seja o desafio que estiver à frente.

[Artigo originalmente publicado no jornal Estado de Minas, em 8/6/2020]

Sandra Regina Goulart Almeida / reitora da UFMG