Pesquisadores da Face estudam manuscritos inéditos de Marx
Integrantes do grupo Economia Política Contemporânea afirmam que pensador alemão é fundamental para superação da crise atual
Em abril de 2009, o professor Eduardo da Motta e Albuquerque, da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da UFMG, estava em Maastricht, Holanda, para uma reunião acadêmica e fez uma rápida viagem a Amsterdã. Ele tinha uma encomenda especial de seus colegas do grupo de pesquisa Economia Política Contemporânea: as cópias de três cadernos de anotações de Karl Marx, manuscritos produzidos de 1868 a 1870 e guardados no Instituto Internacional de História Social. Bem acima de suas melhores expectativas, no dia 27 de abril de 2009, ele acabou tendo a oportunidade de se aproximar de grande quantidade de originais do pensador alemão.
No ano anterior, durante visita à UFMG do pesquisador Michael Krätke, da britânica Lancaster University, Eduardo Albuquerque e os colegas João Antonio de Paula, Hugo da Gama Cerqueira e Leonardo Gomes de Deus haviam oferecido colaboração no Projeto Mega (Marx-Engels Gesamtausgabe), cujo objetivo é pesquisar e publicar a totalidade dos manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels. Iniciada em sua segunda versão nos anos 1970, a empreitada, que se estenderá ainda por algumas décadas, reúne instituições e pesquisadores de diversos países.
“Esses cadernos [B108, B109 e B133] nos interessavam porque contêm dados e considerações sobre questões financeiras relacionadas à crise de 1866”, explica Albuquerque. Marx compilou e tomou notas sobre artigos e tabelas das revistas britânicas The Economist e Money Market Review e trechos de livros de comércio exterior e de contabilidade – ele buscava também manobras contábeis fraudulentas.
"Ele selecionava os trechos mais importantes e organizava suas notas, até por meio de um índice detalhado dos temas. Tentamos entender o que são esses cadernos, analisamos a estratégia de estudo do Marx. Ele tomava notas para atualizar o terceiro volume d’O capital, mas não chegou a usar o material.” Ainda segundo Eduardo Albuquerque, boa parte das dificuldades criadas pela caligrafia difícil de Marx tem sido resolvida com a recuperação dos textos que ele transcreveu da The Economist (disponíveis na internet) e da Money Market (arquivados na British Library).
O esforço de análise das anotações já rendeu quatro artigos, três deles publicados em periódicos internacionais. O primeiro, que apareceu na Review of Radical Political Economics, em 2013, e rendeu ao grupo visibilidade no Projeto Mega, apresentava os cadernos e propunha uma sistematização da leitura da crise pelas notas que Marx não chegou a usar n’O capital.
Dois anos depois, o grupo publicou, no Beiträge zur Marx-Engels Forschung – periódico ligado ao Mega –, trabalho que tratava, de forma mais aprofundada, de como estudar a crise de 1866 por meio das notas. O texto, cujo rascunho fora apresentado a Rolf Hecker, outro pesquisador da Mega, também numa visita à UFMG, mostra que Marx estava atento à inovação financeira e às bolsas de valores, com foco em ações do Banco da Inglaterra, de ferrovias e de empresas de tecnologia. Esse trabalho foi apresentado em encontro de pesquisadores associados ao Projeto Mega, em 2015, em Tóquio, a convite do professor Susumu Takenaga, membro da equipe japonesa do projeto.
O terceiro trabalho, publicado na revista Science and Society em 2016, lançava hipóteses sobre como o raciocínio que Marx desenvolveu sobre a crise de 1866, que teve caráter eminentemente financeiro, teria enriquecido o que viria a constituir o volume 3 d’O capital.
Finalmente, o último artigo produzido pelo grupo, publicado como Texto para Discussão do Cedeplar e em processo de avaliação por pares, tem foco na discussão proposta pelo autor acerca dos vínculos entre mudanças tecnológicas e a relação centro-periferia, com base em leituras e estudos que Marx realizava nos anos finais de sua vida – anos de muita criatividade e reflexão, segundo Eduardo Albuquerque. Esse trabalho foi apresentado, em setembro do ano passado, em Londres, em seminário de comemoração aos 150 anos d’O capital, organizado no King's College, em Londres.
Observação empírica
Para o professor Hugo Cerqueira, Marx não estava satisfeito com o que já havia realizado, daí a necessidade das observações empíricas que estão contidas nos cadernos trazidos de Amsterdã. “Ele buscava aperfeiçoar a teoria, com base na ideia de que cada crise tem suas características próprias, ou seja, de que não caberia uma teoria única para entender toda e qualquer crise. Marxistas discutem desde sempre a questão da teoria da crise, mas provavelmente Marx pensava na necessidade de ir além da análise de seus determinantes gerais”, afirma Cerqueira, destacando que muito poucos pesquisadores no Brasil estão de alguma forma envolvidos com o estudo dos manuscritos inéditos de Karl Marx.
Hugo Cerqueira lembra que Marx escreveu muito e publicou relativamente pouco em vida. “Depois de morto [em 1883], é que se constituiu o marxismo, uma visão de mundo abrangente, formulado com base no entendimento que havia então sobre suas ideias. Esperava-se que elas dessem respostas para tudo, e essa visão de mundo foi transformada em ferramenta de luta do movimento operário e ideologia de partidos e de governos.”
Segundo o professor, neste período, que se estende por várias décadas depois da morte de Marx, a maior parte de seus textos não era conhecida do público. A ideologia alemã, o texto que foi apresentado ao mundo como contendo o chamado materialismo histórico, a filosofia da história de Marx e Engels, foi publicado nos anos 1930, “pesadamente editado”. Já servia ao Estado soviético. “Apenas no ano passado, o volume da Mega relativo a A ideologia alemã veio a público da forma como Marx e Engels deixaram. O material é fragmentário, com passagens que eles riscaram e reformularam ou deixaram de lado. O fato de que tenham desistido de publicá-lo é igualmente significativo”, ressalta Cerqueira.
Algo semelhante se deu com os Manuscritos econômico-filosóficos, primeiro texto de economia de Marx, e mesmo com os Grundrisse, um esboço inicial do que viria a ser O capital, de acordo com Hugo Cerqueira. “O marxismo foi concebido sem que fosse conhecida boa parte do que ele havia escrito. Quando saíram esses textos, muitos foram tachados como ‘trabalhos de juventude’, uma forma de justificar divergências entre seu conteúdo e as visões dominantes no interior do marxismo”, comenta. “Hoje temos acesso a outras produções de Marx, que se livrou do peso de ter que responder pela ideologia oficial de regimes totalitários, por ideias que lhe foram atribuídas.”
Caráter fundamental
A UFMG está conectada com o que há de melhor na pesquisa contemporânea sobre Marx, trabalho que terá grande impacto na forma de entender seu pensamento, ressalta Hugo Cerqueira. “Ele continua sendo um pensador essencial para a compreensão da modernidade. São dois séculos desde o seu nascimento, mas isso não significa, nem de longe, que suas ideias tenham perdido a importância.”
Na década de 1990, após a queda do império soviético, Karl Marx foi declarado morto, mas a crise de 2008 gerou o que se apelidou “a vingança de Marx”. “A corrente dominante da teoria econômica tem uma enorme dificuldade de entender as crises sistêmicas do capitalismo. E, há dez anos, a maioria dos economistas simplesmente descartava a possibilidade de que o capitalismo entrasse em uma crise como aquela”, diz Hugo Cerqueira. Ele acrescenta que a teoria de Marx oferece a compreensão do caráter fundamental do capitalismo, que é um sistema que tende sempre à expansão, mas que produz, ele próprio, as condições que vão levar a sua crise”, diz Hugo Cerqueira.
Para o professor João Antonio de Paula, a crise de 2008 trouxe Karl Marx de volta ao debate, porque foi uma crise clássica, dos fundamentos do capitalismo, e que atingiu o mundo todo. Ele lembra que, na época do Manifesto Comunista, Marx já pensava no capitalismo tomando o mundo como base; era uma tendência que acabou se confirmando.
“Sua descrição da estrutura produtiva é o retrato fiel da atualidade. A ideia de trabalhador coletivo, do chão de fábrica à supervisão, incorpora o trabalho criativo, as tecnologias que poupam trabalho. Sua visão estratégica não perdeu nada com a passagem do tempo. Ele estava preocupado com estruturas fundamentais e nem tanto com os detalhes, que vão se transformando”, comenta João Antonio.
A obra de Marx está em nova fase de sua apropriação, e nunca foi tão pertinente a sua visão do capitalismo, de acordo com João Antonio de Paula. A crise que se instalou há uma década é marcada por elementos como precarização do trabalho, destruição da natureza, queda da lucratividade e por mecanismos compensatórios mobilizados pelo capital, como fraudes, corrupção e violência, enumera. “Isso demonstra que ele nunca foi tão necessário como instrumento de análise e superação da crise.”
Segundo o professor da Face, Marx entendia o capital como uma relação social, caracterizada pelo poder de comando sobre o trabalho. “No capitalismo, dinheiro e máquina tornam-se capital. Trata-se de valor que se autovaloriza, um processo sem finalidade. É uma máquina cega, de efeitos irreversíveis, que danifica a vida e produz morte. Uma força alienante, que oblitera possibilidades outras”, define João Antonio de Paula.
Hugo Cerqueira acrescenta que Marx defende a possibilidade de se organizar a sociedade de maneira que as pessoas sejam livres das restrições do capitalismo, para se emancipar e desenvolver seu potencial. Ele via o lado positivo do capitalismo, que aumentava a riqueza, mas ao custo da espoliação do homem e da natureza. “Em manuscritos tardios, aparecem menções a estudos de Marx sobre química orgânica e agronomia”, diz Cerqueira. “Ele já começava a discutir o potencial destrutivo da agricultura capitalista sobre o meio ambiente. E estudava a renda fundiária, tanto na Rússia feudal quanto nos Estados Unidos capitalista. Queria entender o fenômeno da exploração excessiva da terra, que empobrece a natureza e inviabiliza sua reprodução.”
Para o professor, a revisão no entendimento das ideias de Marx revela uma visão positiva do potencial produtivo do capitalismo, que, no entanto, era percebido por ele como ecologicamente irresponsável. “Essa é uma das preocupações contemporâneas que se conectam com a forma como ele enxergava a sociedade.”
Fases e publicações
A obra de Karl Marx pode ser dividida em três fases, segundo o professor João Antonio de Paula. A primeira delas, quando ainda vivia na Alemanha, é marcada pela tese de doutorado, em que tratou das filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro, e por uma crítica aos fundamentos do Estado Burguês. Também tem início nessa época seu interesse pelos temas econômicos e uma intensa participação na vida política: ele teve atuação importante nas revoluções de 1848 e 1849. Essa fase durou até 1849, quando ele foi expulso da Alemanha e seguiu para Londres.
A segunda etapa de sua produção, que se estendeu até 1864, foi, para João Antonio, a mais criativa e crítica. Foi a época em que ele redigiu os estatutos da Primeira Internacional e estabeleceu os fundamentos da crítica da economia política, que seriam desenvolvidos no Livro I d’O capital. “Foi o auge de Marx, quando ele consolidou sua visão do capitalismo e desenvolveu sua teoria seminal, incluindo conceitos como o de mais-valia”, explica o professor. “Na Internacional, ele tomou contato com a periferia do capitalismo. Também nessa fase, ele se dedicou sistematicamente ao jornalismo, o que enriqueceu sua visão de mundo.”
O ano de 1864 marca o início da terceira e última fase, em que se destacam o interesse pela Rússia – ele chegou a aprender o idioma – e a superação do eurocentrismo. “Ele percebeu que havia caminhos alternativos, passou a valorizar ainda mais a experiência dos povos da periferia do capitalismo”, diz João Antonio. “Marx mudou ao longo do tempo, sua trajetória foi feita de ambiguidade, erros, e ele soube aprender com os erros.”
Esse percurso pode hoje ser acompanhado integralmente com a publicação das obras completas de Marx e Engels pelo Projeto Mega. De 1927 a 1935, desenvolveu-se a primeira versão do Projeto Mega, que só logrou produzir 13 de 42 volumes projetados. Nos anos 1950 e 60, saíram edições das obras de Marx e Engels em alemão e inglês. Antes já houvera duas tentativas de publicar as obras de Marx e Engels em francês.
Na década de 1970, teve início a Mega 2, que pretende publicar a obra em 114 volumes e quatro partes: a primeira inclui todos os textos, à exceção d’O capital; a segunda abrange O capital e o material preparatório para sua obra mais famosa; a terceira é composta da correspondência de Marx e Engels, e a quarta é a reunião de cadernos de notas como os que estão sendo estudados pelos integrantes do grupo Economia Política Contemporânea da UFMG. Já foram editados 70 dos 114 volumes.
Aulas e pesquisa
Em sua tese de doutorado, orientada por João Antonio de Paula e defendida em 2010, o professor Leonardo de Deus traduziu e interpretou manuscrito que serviu de esboço para O capital e foi publicado pelo Projeto Mega nos anos 1980. Leonardo é um exemplo do trabalho desenvolvido na pós-graduação em Economia, que, como informa Hugo Cerqueira, promove a pesquisa sobre a obra de Marx com base no material que já está disponível, tomando o que foi publicado pela Mega ou mesmo os textos inéditos como tema para teses e dissertações. Na graduação, os professores apresentam aos alunos os desdobramentos das pesquisas e debates motivados pela publicação da Mega.
Leonardo de Deus ressalta que os estudos dos cadernos de notas permitem conciliar teoria econômica com conjuntura, ao se analisar a leitura de Marx da crise de 1866 e o impacto disso sobre seu pensamento. “Temos a chance de ampliar a compreensão de uma obra que já é muito conhecida. E separar as visões do Marx e do Engels”, diz Leonardo, enfatizando que o material que veio a público tem despertado grande interesse, especialmente das revistas especializadas. “Com a disponibilidade dos manuscritos na internet, mais pesquisadores vão aparecer para trabalhar com esse material.” Junto com Eduardo Albuquerque e com o físico Leonardo Ribeiro, Leonardo de Deus trabalha sobre um método de base matemática destinado a analisar a teoria de Marx considerando sua complexidade. “O objetivo é dar conta das várias categorias e das tendências e contratendências relacionadas a variações das taxas de lucro”, ele conta.
A publicação de textos até então inéditos de Marx sublinha ainda mais, na visão de João Antonio de Paula, o vigor de seu pensamento e de sua obra. “A obra de Marx não é cristal, não é pronta e acabada. É incompleta, lacunar, tem frestas, e isso não é defeito, é virtude. Está em permanente atualização. Por isso, a transformação dessa obra em dogma, como fez o stalinismo, é o antimarxismo.”
Leonardo de Deus afirma que o trabalho desenvolvido na Face não tem viés ideológico, não tem partidarismo. “Marx não deve ser endeusado, nem jogado fora.”