Saberes tradicionais 'desenham caminhos para um novo futuro'
Em roda de conversa, professores, mestras e mestres defendem a abertura da Universidade a outras epistemologias
“Há muitos anos, eu quero saber por que o Brasil e o mundo nos ensinaram aquilo que não era da gente." Com esse comentário, a mestra indígena Maria Muniz (Mayá), da nação Pataxó Hã Hã Hãe, contestou o modelo de ensino convencional, que exclui as produções de conhecimento popular, e deu o tom da roda de conversa A presença dos saberes tradicionais na universidade, realizada nesta terça-feira, dia 18, como parte da programação da 31ª Semana do Conhecimento.
A discussão, que reuniu, no auditório Sônia Viegas, na Fafich, professores da UFMG, a própria Maria Muniz e outros mestres e mestras condecorados com o título de Notório Saber, foi dominada por um tema: a necessidade de abrir a Universidade às diferentes epistemologias e o papel dos povos tradicionais como produtores de conhecimento. Segundo o professor César Guimarães, do Departamento de Comunicação Social e coordenador da Formação Transversal em Saberes Tradicionais, eles [os povos tradicionais e sua epistemologia] "desenham caminhos para um novo futuro e para um novo presente”. Por conta disso, o mestre Joel Ferreira dos Santos, líder da Teia dos Povos e do assentamento Terra Vista, defendeu a remodelagem dos atuais projetos de ensino para incluir conhecimentos de povos, como Guarani e Tupinambá.
Joel destacou ainda que não basta apenas incorporar os povos tradicionais à educação pública, a universidade também precisa se mover em direção às aldeias, aos quilombos e aos assentamentos. “A universidade foi estruturada fora da lógica indígena, então é difícil desconstruí-la dentro de seu próprio espaço", concordou Sandra Benites, mestre em antropologia no Museu Nacional do Rio de Janeiro e doutoranda na mesma instituição.
Para o professor José Jorge de Carvalho, da UnB e integrante do Conselho Científico do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat), o título de Notório Saber é parte de um processo de transformação que põe mestres e mestras como parceiros e parceiras na instauração de novo modelo da universidade, capaz de incluir negros, indígenas, quilombolas, caiçaras, indivíduos de baixa renda e representantes das culturas populares. “Com isso, transformaremos a própria condução da instituição, levando os mestres também às decisões”, afirmou.
Vestidos de ancestralidade
Apesar dos esforços recentes, ainda há barreiras para os detentores de saberes tradicionais que chegam à academia, como registra Sandra Benites, oriunda da Terra Indígena Porto Lindo, no Mato Grosso, e ativista guarani. Ela mencionou a experiência do filho, que ingressou na Universidade Federal de Santa Catarina e teve dificuldades em acompanhar outros alunos em disciplinas como física e química. “Ninguém perguntou a ele como é a física e química no costume Guarani”, observou.
A professora Leda Maria Martins, da Faculdade de Letras, por sua vez, discorreu sobre o entrecruzamento de sua experiência acadêmica com a relação que mantém com as culturas de matriz africana. Leda é rainha de Nossa Senhora das Mercês da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário no Jatobá, em Belo Horizonte. “Eu não entro nua para a universidade. Eu sou construída por outros lugares de produção do conhecimento. Sou constituída pelo reinado e pelas escolas das academias. Nós nos vestimos de ancestralidade, de um repertório de conhecimentos que não são apenas ilustrativos. Eles se constituem de outras percepções do mundo, e o mundo precisa deles", defendeu.
Responsável pela mediação da roda de conversa, a professora Nilma Lino Gomes, da Faculdade de Educação, pediu que mestres e mestras contribuam com a construção de uma universidade multiétnica, multirracial, livre e diversa, atravessada por territorialidades e saberes que transformem a instituição eurocentrada em pública e brasileira de fato. A atividade foi encerrada na área externa do auditório, onde os participantes, de braços dados, acompanharam um ritual com cânticos e danças indígenas.