Opinião

Todas as mulheres do mundo e uma pandemia: a disputa pelos valores futuros

Professora Marlise Matos discute, em artigo, se o pós-covid-19 será mais feminista

Campanha de conscientização em rua de São Paulo feita por profissionais de saúde: mulheres são maioria na linha de frente de combate à Covid-19
Ação educativa feita por profissionais de saúde em rua de São Paulo: mulheres são maioria na linha de frente de combate à Covid-19 Prefeitura de São Paulo / Fotos Públicas / CC BY-NC 2.0

Tenho ouvido colegas afirmarem que, no mundo pós-pandemia, a chance de disseminação dos valores éticos do feminismo será maior. Não sei mesmo se será assim. Afirmações dessa natureza podem revelar mais o nosso desejo do que a própria realidade. Estamos vivendo transformações importantes com fôlego imenso, capaz de deixar sob suspeita as nossas certezas. Será que sairemos mais “feministas” desse processo? Afinal, quais seriam esses “valores feministas”? Sendo o(s) feminismo(s), a um só tempo, práxis de transformação social e política do mundo e teoria que visa reinventar as ciências e repor saberes em novo patamar, quais seriam os principais valores feministas e como (se é que o fazem) se articulam a esse momento?

Temos múltiplos valores feministas, porque os feminismos são, ao cabo, uma agenda crítico-reflexiva de construção de novo pacto civilizatório. Os desafios são enormes. Se fôssemos realizar uma listagem de tais “valores”, seria crucial incluir o cuidado (autocuidado e cuidado recíproco); a sororidade fundamentada no espírito de solidariedade e respeito mútuo e pautada na discussão franca, honesta e aberta sobre a(s) diferença(s) entre umas e outras; a liberdade de viver sem discriminação, opressão ou violência, tentando recriar práticas da não violência; o ativismo interseccional (que inclui, necessariamente, a luta antirracista e antilesbotransfóbica) contido no radical questionamento de todas as estruturas que mantêm mulheres subjugadas; a liberdade de escolha e autonomia da integridade física, incluindo direitos reprodutivos, sexuais, ao aborto e à afirmação da identidade e da orientação sexual; direito a relacionamentos pessoais saudáveis, significativos e mutuamente respeitosos; a reinvenção do modelo econômico para o Bem Viver (que inclui perspectiva ecológica e sustentável); a democracia radical, em que poder e a autoridade são formas responsáveis de gerir as hierarquias institucionais e cotidianas; o reconhecimento da agência feminista de todas as mulheres, em especial as negras e indígenas, que têm história rica, ainda não documentada, silenciada ou ignorada; o direito de expressar a nossa espiritualidade dentro ou fora das religiões organizadas; o esforço de ampliar uma rede multigeracional e uma fonte permanente de apoio e fortalecimento às novas líderes feministas em âmbitos local, nacional e mundial.

Temos múltiplos valores feministas, porque os feminismos são, ao cabo, uma agenda crítico-reflexiva de construção do novo pacto civilizatório.

Certamente há outros valores a incluir nessa lista. O que se tem em mente ao afirmar uma maior abertura a eles é a dimensão do cuidado, que na urgência do momento está em evidência. O afeto que nos une agora é o desamparo, como bem lembrou a antropóloga Debora Diniz, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em abril. O desamparo civilizatório diante da pandemia de Covid-19 impacta mulheres e homens de forma muito diferenciada. No caso das mulheres, destaco as seguintes transformações:

Saúde e assistência social
a) embora relatórios epidemiológicos revelem que mais homens estão morrendo de Covid-19 e que a resposta imune das mulheres ao vírus é mais forte, a saúde delas é, geralmente, impactada de forma mais adversa pela constante necessidade de realocação de recursos e de prioridades, considerando que no Brasil não existe, de fato, divisão sexual dos trabalhos de cuidado, incluindo serviços de saúde sexual e de saúde reprodutiva e sobre maternidade e mortalidade; b) medidas adotadas pelo governo federal e pelo Congresso Nacional (a Lei 13.982/2020) viabilizaram a renda emergencial para pessoas em situação de vulnerabilidade que alcançou as mulheres, e são as assistentes sociais que redobram esforços para minimizar os riscos para elas e para os mais vulneráveis; c) a saúde mental delas está impactada: crescem os quadros de ansiedade, depressão, pânico e os episódios de violência doméstica.

Economia
a) já existe perda generalizada de empregos, e a população negra, feminina e jovem é a mais desprotegida; mulheres são ainda as que conseguem poupar menos (e têm menos reservas econômicas) e inserem-se em empregos inseguros, informais ou precários; b) houve aumento desproporcional do trabalho não remunerado entre as mulheres por conta das crianças fora da escola, dos cuidados de idosos e da multiplicação de jornadas; c) mulheres estão sobrecarregadas por se constituírem majoritariamente como força de trabalho em saúde, educação e assistência social; d) nas comunidades urbanas e rurais, periferias e favelas, mulheres são as principais lideranças; abandonadas pelo Estado, estão ou estarão em penúria, buscando por colaborações e apoios para garantir a sobrevivência material das comunidades pobres; e) famílias monoparentais femininas são mais atingidas economicamente; no Brasil, 40% dos domicílios têm essa configuração.

Violações dos direitos humanos e aumento da violência contra as mulheres
a) com o estresse econômico e social, movimentação restrita e isolamento social, a violência de gênero vem aumentando exponencialmente. Muitas mulheres estão sendo forçadas a se “trancarem” em casa com seus agressores, ao mesmo tempo que serviços de apoio a familiares (especialmente mulheres e meninas) sobreviventes estão interrompidos ou são inacessíveis; b) a força de trabalho basicamente feminizada da educação vem sendo convocada a atuar em atividades de EAD, sem a devida formação/capacitação; c) na experiência de alguns poucos casais heterossexuais, seria possível um intercâmbio ou até uma troca entre o principal prestador dos cuidados infantis (especialmente se a mãe está no hospital/posto de saúde e o pai, em casa, em regime de teletrabalho), mas, entre nós, não há relatos dessa experiência.

Educação
a) com a força de trabalho feminizada, as professoras estão sobrecarregadas com as demandas do trabalho remoto sob o imperativo do EAD, sem terem sido formadas nessa modalidade; b) há um grande desnível das condições atuais do trabalho remoto para professoras que pertencem ao campo público e as do campo privado; neste último, as pressões vêm sendo maiores. 

Política
a) haverá eleições municipais neste ano. Por causa das mudanças acima expostas, as mulheres terão sua capacidade de encarar as campanhas político-eleitorais profundamente comprometida; b) como o espaço político é uma “reserva” cismasculina e branca, as mulheres candidatas, em razão da pandemia, terão ainda menos recursos e chances de se elegerem, comprometendo o momento de tendência de renovação da política parlamentar nas duas últimas eleições.

Ciências
a) o impacto negativo da maternidade sobre a produtividade acadêmico-científica das mulheres está dado, já que elas permanecem mais tempo com filhos (especialmente no auxílio a tarefas escolares) e idosos e dedicadas a tarefas domésticas; b) mulheres cientistas nas áreas do enfrentamento à Covid-19 estão dedicadas às suas pesquisas e laboratórios, inclusive com prejuízo, em diferentes graus, para seus familiares e riscos maiores à sua saúde física e mental.

Ocupadas na saúde, na educação, na assistência, no teletrabalho em casa, cuidando de crianças e idosos e realizando trabalhos domésticos, todas as mulheres sofrem, dramaticamente, os impactos da pandemia. O aprendizado milenar dos cuidados nos possibilita hoje governar (quando as mulheres governam) de modo mais eficaz para enfrentar a pandemia. E a busca por novos valores orientadores das ações no futuro é, sim, de fato, fundamental. No entanto, aquilo que viveremos amanhã está sendo construído agora, e todas as mulheres estão sobrecarregadas, confusas e ansiosas. Esforços para denunciar essa condição estão em curso, mas não há como fazer previsões otimistas. Se não formos capazes de, desde já, reconstruir nossa sociabilidade com base em valores feministas, no futuro próximo, eles serão apenas aquilo que já são agora: os motores das nossas lutas, resistências e resiliências.

(Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da Fafich, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e do Centro do Interesse Feminista e de Gênero e integrante da Rede Direitos Humanos da UFMG)