Arte e Cultura

UFMG é a primeira universidade brasileira a institucionalizar acervo LGBT+

Mantido pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ (NUH), acervo, que será aberto à comunidade em novembro, está localizado em sala especial da biblioteca da Fafich

Imagem da primeira identificação criminal de Cintura Fina, reproduzida dos autos judiciais, registrada em 25 de julho de 1953
Imagem da primeira identificação criminal de Cintura Fina, registrada em 25 de julho de 1953 Foto: Reprodução | Acervo NUH

A Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG aprovou, no início de julho, a institucionalização do acervo LGBT+ mantido pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ (NUH) da Universidade. Com a decisão, a Universidade é a primeira instituição pública de ensino superior brasileira a ter um acervo LGBT+. Localizado em sala especial da biblioteca da unidade, o Acervo LGBT+ Cintura Fina reúne arquivos da memória da comunidade na cidade de Belo Horizonte.

O objetivo do acervo é resgatar, registrar, difundir e preservar o patrimônio, relacionado a práticas, memória e produções culturais da comunidade LGBT+, assim como lugares, imagens e documentos. Para tanto, o acervo se vale, também, de histórias de pessoas LGBT+ que marcaram os cenários local e nacional.

“O nome do acervo homenageia Cintura Fina, uma dissidente sexual, figura não propriamente travesti, mas do que hoje denominaríamos queer: foi uma importante personagem LGBT+ no cenário de Belo Horizonte”, explica texto de apresentação do projeto, publicado no site do NUH.

Coordenador do NUH, o professor Marco Aurélio Prado considera que a institucionalização do acervo contribui para o aprimoramento da democracia no Brasil. "A institucionalização, aprovada pela Congregação da Fafich, representa um reconhecimento institucional da sociabilidade LGBT+. É também um passo importante para o fortalecimento da democracia brasileira, porque o acervo traz visibilidade a trajetórias que nunca foram percebidas como parte da história da nossa sociedade”, diz.

Portas abertas para a pesquisa
Segundo Marco Prado, o Acervo LGBT+ Cintura Fina, que poderá ser consultado pela comunidade universitária a partir de novembro, "abre as portas para um universo de pesquisas e interrogações acerca da história da comunidade LGBT+, permitindo, por meio de um olhar para o passado, percepções sobre o presente e também sobre o futuro". Os documentos também servirão para subsidiar pesquisas e a composição de exposições.

Marco Prado afirma que a institucionalização ajuda a "trazer para a pauta do presente histórias que foram, na verdade, experimentos de liberdade e de questionamento aos parâmetros que decidem a sociabilidade, a diversidade corporal, de gênero e sexualidade de um certo tempo". A preservação de histórias invisibilizadas, defende o professor, também materializa a preservação dos direitos humanos dessas pessoas. Uma delas, lembra Prado, é a própria Cintura Fina, que dá nome ao acervo. "Mais do que uma homenagem, essa escolha também representa a busca pela reafirmação da importância dessa pessoa e das experiências queer, até hoje criminalizadas, patologizadas e incompreendidas pela sociedade."

Composição
O Acervo LGBT+ Cintura Fina é composto de documentos, cartas, fotos, recortes de revistas e jornais e outras mídias doadas por pesquisadores. Um deles é o especialista em memória LGBT Luiz Morando, doutor em literatura comparada pela UFMG. Autor do livro Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte, biografia da travesti que dá nome ao acervo, Morando doou ao projeto sua coleção pessoal, mantida de 1987 a 2019.

Em entrevista à Rádio UFMG Educativa, na época de lançamento da biografia, Morando defendeu a importância de registrar memórias, lembranças e experiências de vida das pessoas LGBT+. “Buscar essa preservação ativamente é importante porque muitos registros estão se perdendo. Há pessoas que já faleceram e não temos mais acesso ao que essas pessoas construíram durante sua vida, seja em forma de cartas, fotografias e até mesmo de homenagens recebidas. O registro é importante porque nenhuma cultura se constitui sem a guarda, preservação e manutenção da sua própria memória. Quanto mais essa memória se perde, mais fraca essa cultura se torna e mais fracos os grupos sociais que constituem essa cultura se tornam. Recolher, guardar, preservar, manter e estudar essa memória é muito importante não só para fortalecer a memória passada, mas também a autoestima desse público”, afirmou.

Além de Luiz Morando, que doou grande parte dos materiais sobre a Cintura Fina que compõem o acervo recém-institucionalizado, o coordenador do NUH, Marco Prado, destaca também o papel decisivo da bibliotecária Vilma Carvalho de Souza, coordenadora da biblioteca da Fafich, que atualmente abriga o acervo, para a construção e consolidação do projeto. "Além de ser uma funcionária exemplar, a Vilma foi uma batalhadora pelo acervo. Como coordenadora da biblioteca da Fafich, ela abraçou o projeto desde o início, conseguindo a sala especial que hoje recebe o acervo agora institucionalizado pela Universidade", destaca.

Cintura Fina
Em dezembro de 2021, ano de lançamento da biografia, Cintura Fina foi reconhecida como cidadã honorária de Belo Horizonte, após indicação da vereadora Iza Lourença (PSOL). Natural do Ceará, ela viveu em Belo Horizonte por quase 30 anos, nas décadas de 50, 60 e 70. Na capital mineira, foi cozinheira, faxineira, profissional do sexo e gari, mas destacou-se na mídia por sua personalidade combativa e pelo uso da navalha, para se defender de agressões. 

Embora fosse retratada como violenta pela mídia, Cintura Fina era conhecida nas ruas pela personalidade amigável e pela defesa das populações mais vulneráveis, em especial as prostitutas. Cintura Fina viveu seus últimos anos de vida em Uberaba, no Triângulo Mineiro, onde morreu em 1995, aos 62 anos. Três anos depois, em 1998, ficou conhecida nacionalmente, ao ser interpretada por Matheus Nachtergaele na minissérie Hilda Furacão, da TV Globo. 

Outros conteúdos
O acervo conta também com todas as edições da coluna assinada pelo artista plástico gay Sávio Reale, publicadas na Página GLS do jornal O Tempo, de 1996 a 2006, e mantidas pelo NUH desde 2010. Inicialmente mantida apenas pelo artista, a publicação passou a ter autoria também de Dominique, namorado de Sávio, até setembro de 1998. Os textos traçam um panorama da sociabilidade LGBT+ da época, com debates acerca de personagens que habitavam a cena pública brasileira e relatos de ações dos grupos LGBT+ em Belo Horizonte, como as primeiras paradas da cidade. 

Em entrevista concedida a O Tempo, na época de encerramento da coluna, Reale destacou o pioneirismo da iniciativa, ao dedicar, em um jornal diário, espaço semanal fixo exclusivo para assuntos de interesse da comunidade gay. "A GLS, sem dúvida, ajudou a preparar o terreno para a criação de todos os grupos que estão em atividade e também aqueles que já desapareceram ou se transformaram", disse.

O Acervo LGBT+ Cintura Fina também mantém os textos da página GLS – onde era publicada a coluna de Sávio Reale – do caderno de cultura de O Tempo, que circulou de 23 de novembro de 1996 a 24 de fevereiro de 2012. Criada pelo jornalista Marco Antônio Lacerda, a página contava com uma seção de cartas: 113 correspondências institucionais, de leitores e de pessoas de destaque na comunidade LGBT+, publicadas de 1997 a 2005, também integram o acervo. O projeto é completado por exemplares da extinta revista G Magazine, publicação nacional com conteúdo de nudez masculina e reportagens para o público gay. 

O professor Marco Prado, do NUH, falou ao programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa, sobre a institucionalização do acervo. Ouça a participação:

Hugo Rafael | com informações do NUH