Ética, estética e epidemiologia da paisagem
Os conceitos de paisagem, lugar e território permeiam a síntese da ciência geográfica e dialogam interdisciplinarmente com diversas outras áreas do conhecimento. Nos tempos atuais, marcados pela égide urbano-industrial capitalista, o conceito de paisagem é amplamente discutido entre autoridades do meio ambiente, uma vez que é quase sempre direta ou indiretamente afetado pelos processos socioeconômicos e seus impactos. Aqui, a paisagem deixa de ser simplesmente o horizonte inicial captado pela percepção e pelo olhar, o lugar onde céu e terra se tocam para se preencher de sentidos e significados culturalmente complexos. A paisagem historicamente também marca processos de rupturas e permanências humanas, na medida em que o homem se apropria dos mais diferentes espaços terrestres, sejam eles na natureza, no campo ou na cidade. É também o homem que diversifica a paisagem dando-lhe contornos e sentidos existenciais que transitam do local ao global. Assim, a paisagem é um complexo de significados que permeiam a relação entre o homem e a natureza, sendo muito mais que um elemento de apreciação estética.
O geógrafo francês Yves Lacoste, no livro A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para se fazer a guerra, vai além do apreciar a paisagem, como se fosse apenas um estatuto do simples e do belo ou um retorno à “essência” do natural, que remetesse à origem humana e aos povos da pré-história. Para o autor, contemplar a natureza nos seus próprios termos é uma prática muito difundida pela geografia turística e propagada pelos meios de comunicação de massa. A ideologia do turismo faz da geografia uma forma de consumo imediato do espaço, em que cada vez mais multidões são dominadas por uma vertigem instantânea de paisagens, fonte de emoções estéticas, extasiantes, alienadoras, provocantes. A paisagem é apenas uma imagem para decorar a sala da agência de turismo, uma carta, um traçado do itinerário/roteiro das próximas férias. Nesse sentido, é compreendida apenas para se contemplar e admirar, entendida aqui como fuga, mesmo que temporária, da realidade e do caos existencial diário.
É necessário romper com a passividade e a alienação ao apreciar a paisagem, como se apreciasse o vazio
O cinema também reproduz infatigavelmente certos tipos de imagens e paisagens que são como mensagens ou discursos mudos, vazios e, portanto, dificilmente decodificáveis. Esse fenômeno social contemporâneo imposto pela cultura de massa promove uma impregnação de imagens e sentidos transmitindo mensagens geográficas difusas e incompreensíveis. Historicamente, essas ações pensadas, planejadas e programadas colocam milhares de pessoas em posição de contemplação estética, camuflando e anulando a ideia de que uma minoria analisa o espaço, com métodos, táticas e estratégias para enganar e vencer o “adversário”. Durante o processo de consolidação dos Estados modernos, o adversário era o inimigo de guerra, na disputa por novos territórios e matérias-primas. Nos tempos atuais, a busca é por territórios e pessoas que alimentem uma ampla rede de consumo delirante e alienador.
É necessário romper com a passividade e a alienação ao apreciar a paisagem, como se apreciasse o vazio. Assim como uma obra de arte é anteriormente codificada por quem a produziu, a paisagem também é um retrato real da realidade vivida e dimensiona uma série de relações nem sempre percebidas. Além do simples encantamento e êxtase pela paisagem, fazem-se necessários novos conceitos para a paisagem do futuro: a ética, a estética e a epistemologia.
Quando falamos em ética da paisagem, percebem-se as teorias atuais se desdobrando sobre o complexo arcabouço da paisagem, analisando-o, decodificando-o, interpretando-o. Várias áreas do conhecimento como a antropologia, a arqueologia, a ecologia e a filosofia têm hoje a paisagem como problema teórico, científico e metodológico em seus estudos. Da filosofia da paisagem podemos compreender que ela é a medida terrestre do homem e, portanto, a medida humana da terra. Daí fica mais fácil entender a dupla articulação entre natureza e cultura, que se tornam elementos integradores da realidade e essencialmente indissociáveis. Da relação e do conflito entre os homens e destes com a natureza vem a necessidade de se compreender a paisagem como mediadora e limite para a ação e a expansão humana. O ecúmeno hoje vai muito além do conceito de terra habitável e habitada. Tendo a paisagem como teatro em que se desenrolam as ações humanas, estas devem ser mediadas pela ética e seus desdobramentos, visando minimizar impactos, excessos, distorções, abusos. O pensamento “paisageiro” sugere então uma aproximação mesológica (relacionada ao meio ambiente) com a ética do viver e do agir, compreendendo e respeitando diferentes níveis e estágios de natureza e cultura.
Na linha tênue que separa a ética da estética, talvez esteja o futuro da paisagem, de sua percepção, interpretação, análise e decodificação. Daí faz-se necessário ampliar a noção contemporânea da estética, rompendo com suas limitações para buscar a estética da paisagem. Várias limitações pairam hoje sobre a função do estético na sociedade moderna: a estética humana que despreza a beleza natural, a estética da arte mais valorizada culturalmente que a da natureza, a desconexão entre estética e ambiente. Quando conectamos a paisagem à estética, reafirmamos a necessidade de uma apreciação crítica e consciente da natureza. Ao resgatar a estética da paisagem e dos lugares, resgataremos a essência da paisagem natural, a estética da bela natureza, ou seja, os sentidos e significados da nossa relação com o meio, desenvolvendo, consequentemente, um compromisso consciente com ela.
Se persistirem os problemas de uma ética e estética da paisagem, faz-se necessária a compreensão de uma epistemologia da paisagem na qual a interpretação dos lugares tenha como base uma filosofia primordial que conduza à ecologia e conservação das paisagens. Novos tempos se fazem necessários, nos quais a ética, a estética e a epistemologia possam intermediar relações com a paisagem, preservando-a dos destrutivos desígnios humanos.
(*) Geógrafa e mestre em Geografia (área de concentração em Organização do Espaço) pelo IGC/UFMG
(**) Educador e mobilizador da Rede Ação Ambiental com formação em Ecologia, Geografia, Magistério, Patrimônio e Turismo