Envelhecer é viver

Mulheres fortes

Antropóloga mostra que, na vida do povo Maxakali, não há oposições de gênero e entre cotidiano e ritual – essas dimensões se complementam

Uma das atividades a que as mulheres do povo Tikm’n, ou Maxakali, dedicam-se com mais intensidade está ligada à embaúba. Elas extraem a casca da planta, separam a fibra, produzem a linha e tecem colares, bolsas e redes de pesca. Mas o que pode parecer, à primeira vista, mais uma prática ordinária do cotidiano envolve mediação e interação com espíritos. As peças podem ser usadas para procedimentos xamânicos de cura e ­outros que visam ao bem-estar da comunidade. Esse é um dos atos femininos que, embora discretos, traduzem a força e o poder das mulheres desse povo.

Renata e Julinha, mãe e filha, raspam a casca da embaúba
Renata e Julinha, mãe e filha, raspam a casca da embaúba Claudia Magnani

As práticas e os saberes das mulheres Tikm’n são objeto de pesquisa da antropóloga Claudia Magnani, que defendeu tese em agosto, no Programa de Pós-graduação em Educação. Segundo a pesquisadora, a principal contribuição de seu trabalho é desconstruir a dicotomia entre o que é ritual e o que é ordinário e entre os papéis de homens e mulheres. “Assim como todo o mundo cotidiano Tikm’n, as atividades femininas têm pouco de ordinário. Há relações cosmológicas profundas e importantes que são reconhecidas e complementadas pelos homens da aldeia”, explica.

Fascinada pelo mundo feminino desde suas primeiras leituras ­sobre diferentes povos indígenas ameríndios, Claudia Magnani ­lembra que a etnografia é historicamente androcêntrica e valoriza temas clássicos como rituais, a caça e a guerra. As mulheres, ­segundo ela, ficam excluídas dos estudos, como se se limitassem aos cuidados com a casa, os filhos e a alimentação.

Em sua imersão na Aldeia Verde, localizada próximo ao ­município de Ladainha, no Vale do Mucuri, Claudia, que é italiana e cursou graduação e mestrado em Antropologia na Universidade de Bolonha, acompanhou as mulheres no dia a dia, muito marcado por visitas entre parentes, por exemplo. “Esse convívio, que se caracteriza pela comensalidade, é a expressão do trabalho sociopolítico de criar, manter e romper relações familiares e de grupos. Essas práticas envolvem também os espíritos. Não se pode separar a vida diária da dimensão ritual”, afirma a pesquisadora, que encontrou no trabalho com a embaúba o ambiente mais fértil para entrar em contato com as mulheres e tecer com elas suas relações em campo. A comunidade abriga 350 dos cerca de 2 mil indivíduos do povo Tikm’n. 

Anfitriã e coorientadora
O primeiro contato de Claudia Magnani com os Maxakali foi no âmbito do Programa Saberes Indígenas na Escola, da Faculdade de Educação (FaE), que promove oficinas nas comunidades e produz material didático de alfabetização nas línguas nativas. Nos cerca de seis meses que passou na aldeia, distribuídos em três temporadas e mais algumas visitas curtas, Claudia teve como anfitriã Sueli Maxakali, ela própria pesquisadora, aluna da Formação Intercultural de Educadores Indígenas, da FaE, que assumiu o papel de coorientadora da investigação.

“Sueli e outras três mulheres contribuíram não apenas para favorecer a experiência de campo, mas também para as elaborações teóricas. Elas proveram reflexões, além de relatos”, revela Claudia Magnani. Segundo ela, certa etnologia promove hoje uma pesquisa mais colaborativa com os parceiros indígenas. “Eles transcendem o papel de informantes para se tornar pensadores e coprodutores do trabalho.”

As “mulheres fortes” (n Ka’ok) que dão nome à tese são aquelas que medeiam as relações com os espíritos e detêm elas mesmas espíritos fortes. Embora o xamanismo seja difundido entre todos e todas, certos indivíduos destacam-se pela intensidade. “Algumas mulheres adquirem maior inteligência corporal, intelectual e espiritual. Elas dominam cantos, histórias, manipulação de substâncias e produção de artefatos e são capazes de intervir mais nos processos xamânicos e de cura”, conclui Claudia Magnani, que tem planos de continuar a colaborar com suas parceiras em futuros projetos de pesquisa.

Tese: Ũn Ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulheres Tikmũ’ũn – Maxakali
Autora: Claudia Magnani
Orientadora: Ana Maria Rabelo Gomes
Coorientadora: Sueli Maxakali
Defesa em agosto de 2018, no Programa de Pós-graduação em Educação

Itamar Rigueira Jr.