Jeitos, rejeitos e sujeitos
O tradicional território ecológico, geológico e cultural do Quadrilátero Ferrífero (QF), reconhecido internacionalmente pelas riquezas em ouro, minério de ferro, manganês e água potável, demostrou a ineficiência da sociedade brasileira perante os mandos e desmandos do capital. Essencialmente movida pela exploração mineral desde os tempos pretéritos, Minas Gerais se vê numa encruzilhada: adotar projeto orientado por matrizes socioeconômicas mais viáveis ou fazer perpetuar os múltiplos jeitos insustentáveis de movimentar a economia.
O Vale da Morte criado pelo rompimento da barragem de rejeitos minerários, no Córrego do Feijão, ceifou inúmeras vidas, afetou comunidades rurais e ecossistemas naturais e enlutou inúmeras famílias. Era mais um dia comum de trabalho, horário de almoço, no qual o feijão era uma das muitas opções para restaurar as forças e energias. De repente, uma avalanche ganhou cobertura nacional e internacional nos canais de TV. A coletividade mineira assistiu atônita ao chocante e triste espetáculo da irresponsabilidade, da ineficiência e do descaso com a vida em suas múltiplas manifestações.
Quantas outras barragens se romperão? Quantas vidas serão exterminadas? Até quando o descaso perdurará?
O episódio reacendeu a tragédia de 2015, em Bento Rodrigues, e provocou indagações que não cessarão enquanto não forem respondidas. Quantas outras barragens se romperão? Quantas vidas serão exterminadas? Até quando o descaso perdurará? Longe de respostas concretas ou soluções imediatas, o que se viu foi um estado de terror: outras barragens em Congonhas, Barão de Cocais, Itatiaiuçu e Macacos, entre outras, apresentam risco de rompimento. Sirenes tocam, e famílias são evacuadas dos lugares com os quais sempre mantiveram relações culturais. Tristeza, pânico e incerteza, laços rompidos, estremecidos. O local da família, do aconchego e da proteção virou paisagem de medo e morte. Até quando?
É preciso urgentemente legitimar que as paisagens serranas do QF, berço da sociedade mineira, não são recantos de lucro fácil para pequenos grupos empresariais. A vontade, a identidade e o direito de suas populações tradicionais devem prevalecer, como atestam os preceitos e prerrogativas da Constituição Federal. O Estado não pode se curvar à mineração, sob a desculpa de que a atividade é essencial à economia estadual. Há outras potencialidades e possibilidades que precisam ser evidenciadas. Brumadinho é um clamor. O grito de uma coletividade que, após superar a dor das tragédias minerárias, refaz novos cenários e aspirações. É preciso considerar os sujeitos socioculturais e sua diversidade, seus saberes e fazeres, seus jeitos de ser e estar no mundo. E não ignorá-los, como tem sido feito pelas mineradoras.
Não é de hoje que pesquisadores de diferentes instituições e formações defendem novas concepções para uso e ocupação do solo no QF. Novas modalidades de apropriação dos recursos naturais precisam ser discutidas e gestadas, como o Geoparque. Do passado de veios auríferos ao tempo presente das barragens de rejeitos, muitos são os sujeitos atingidos, direta e indiretamente. Com potencial para a agroecologia e o turismo, a região tem ampliado suas facetas minerárias para outras áreas do estado. Há expansões na direção de Congonhas, bem como linhas ideológicas e mercadológicas que, subindo o Espinhaço, chegarão ao norte de Minas. Cenários únicos entre Grão Mogol e Rio Pardo estão ameaçados, bem como suas comunidades tradicionais. Na Serra da Tapera, em Piracema, a destruição aumenta, respaldada pelos preceitos legais de um licenciamento ambiental muitas vezes incompleto e permissivo.
Há um novo QF que precisa ser ampliado, o Quadrilátero Aquífero, como propõem os articuladores do Movimento Serra do Gandarela. Comunidades tradicionais e paisagens únicas devem se beneficiar do turismo e de outras formas sustentáveis de aquecer a economia. Elas formam mosaicos de riqueza cultural e biológica capazes de encantar o mundo e mostrar uma nova Minas Gerais. Assim, Brumadinho, espaço da triste constatação da inviabilidade minerária como força prioritária da economia local, jamais será esquecida.
Lembraremos de uma nova Brumadinho, que mostra ao mundo os belos jardins e as obras excepcionais de Inhotim. A Brumadinho da terceira povoação mais antiga fundada por Fernão Dias, das paisagens ecológicas e geológicas da Serra do Rola Moça e do Pico dos Três Irmãos, da comunidade quilombola do Sapé. Brumadinho das linhas férreas do Ramal Paraopeba, por onde passava o Trem Vera Cruz, rumo ao Rio de Janeiro. Brumadinho de um povo que reconta a sua história. “Das Minas do Ouro às Minas Gerais. Mar de Lama nunca mais!” Brumadinho deve ser a capital simbólica de um novo estado, onde gente, natureza e água valham mais que os interesses capitalistas cruéis e inescrupulosos. E Brumadinho se tornará a capital do Novo QF, onde as paisagens serranas serão legado de uma sociedade, de sua identidade, de sua historicidade. E pessoas do mundo inteiro visitarão esses recantos e encantos das Minas Gerais: Minas das águas, das cachoeiras, dos límpidos ribeiros e nascentes. Minas da ecologia, da sustentabilidade e, sobretudo, da responsabilidade compartilhada por todos.