“A produção científica não pode se sujeitar a pressões políticas”
Em entrevista ao BOLETIM, o professor Ricardo Galvão, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Academia Brasileira de Ciências, defende a soberania nacional sobre tecnologias disruptivas, como o monitoramento ambiental por satélite, e a constante participação das universidades na proposição de modelos de desenvolvimento sustentável.
Galvão participará da abertura da Semana do Conhecimento, no dia 14 de outubro, quando falará sobre o trabalho de monitoramento dos biomas brasileiros feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que dirigiu até recentemente, e sobre um caso de exploração mineral em terras indígenas. A palestra de Galvão será realizada no auditório da Reitoria, a partir das 9h30.
Como as universidades públicas podem contribuir para o desenvolvimento sustentável?
Esse é um ponto importante, pois no caso da preservação dos nossos biomas, sobretudo o amazônico, e o seu desenvolvimento sustentável, a participação das universidades brasileiras é conhecida e muito forte. Além do próprio Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, do Ministério de Ciência e Tecnologia, a Universidade Federal do Amazonas contribui com o que temos de mais avançado em monitoramento de alertas de desmatamento. O próprio Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) conta com representantes das universidades federais de Alagoas e de Goiás e da Universidade de São Paulo, que contribuem também com vários trabalhos sobre modelos de desenvolvimento sustentável, inclusive para algumas áreas amazônicas. Esperamos que essa participação seja cada vez maior, para mostrar ao governo que o desenvolvimento sustentável da Amazônia não só é possível, como também muito rentável. A Universidade Federal do Paraná, por exemplo, mantém um grupo de advogados trabalhando na aplicação da legislação ambiental para estimular o desenvolvimento sustentável.
Qual o principal desafio para se conciliar desenvolvimento sustentável e economia?
Na questão da Amazônia, o principal ponto, apresentado, com razão, pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é que não basta o monitoramento do desmatamento. É necessária também uma proposta sustentável economicamente para a população. Para isso, o governo deve fazer uso das informações e conhecimentos já desenvolvidos no meio acadêmico. O ministro até fala em desenvolvimento sustentável, mas não apresenta nenhum plano bem elaborado. A questão jurídica na Amazônia é terrível – a legalização das terras é um problema complexo, já que cada pedaço de terra, muitas vezes, tem mais de dez proprietários. O papel das universidades é fornecer estudos científicos e modelos que possam ser utilizados, até mesmo por empresas. E temos diversos exemplos de estudos extremamente bem feitos, como o de uma colega da USP sobre um levantamento social relacionado aos índios, que devem embasar as decisões do Brasil.
No próximo ano, o Inpe lança seu primeiro satélite, o Amazônia 1. O que significa para o país desenvolver a própria tecnologia de monitoramento por satélite? E como o senhor avalia a participação das universidades nessa área?
O monitoramento por satélite é estratégico e importantíssimo para o Brasil. O país precisa ter o domínio soberano sobre os conhecimentos básicos da tecnologia espacial, que chamamos de tecnologia disruptiva. Poderíamos comprar imagens de outros satélites, mas, no caso de algum conflito, esses dados poderiam não ser fornecidos, principalmente aqueles que envolvem a nossa defesa. E o mais importante é que a tecnologia espacial pode estimular muitas empresas, inclusive com aplicações em outras áreas. Ainda neste ano, o Inpe vai lançar o satélite Cbers-04A, desenvolvido em colaboração com a China. O satélite Amazônia 1, construído inteiramente pelo Inpe e com tecnologia nacional, será lançado em junho ou julho de 2020.
A parceria do Inpe com as universidades brasileiras se dá em relação ao desenvolvimento de pequenos satélites ou microssatélites, como na criação dos dois primeiros satélites BrasilSat, desenvolvidos com a Universidade Federal de Santa Maria. A parceria com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e com a Nasa resultou no satélite Sport, muito importante para o monitoramento da ionosfera e da magnetosfera terrestre.
O senhor tem falado sobre a importância de os cientistas divulgarem os resultados de seus estudos mesmo diante das pressões políticas...
A produção científica e o ensino não podem se sujeitar a pressões políticas. O físico norte-americano, vencedor do Prêmio Nobel, Richard Feynman, dizia que governos não têm o direito de influenciar a produção científica e seus resultados. Portanto, é necessário que o governo saiba consultar o que já existe de informação. No caso da Amazônia e do aquecimento global, isso é essencial. Por isso, é inaceitável a crítica que o presidente Bolsonaro fez ao Inpe, assim como é inaceitável, em qualquer país, que o presidente da República conteste um órgão do próprio governo de enorme prestígio internacional. Desde que tive esse embate com o presidente, as reações por parte da comunidade científica e as manifestações de apoio me deixaram otimista. Talvez consigamos reverter em parte esses ataques à academia e às universidades públicas.