No território comum

A festa da juventude

Com programação gratuita, Festival de Verão UFMG elege como tema a efervescência cultural que tomou conta do chamado “baixo centro” de BH

Em dezembro de 2009, a Prefeitura de Belo Horizonte publicou decreto que proibia a realização de “eventos de qualquer natureza” na Praça da Estação, opondo-se não apenas à juventude da cidade, que há anos ocupava intensamente aquele espaço, mas ao próprio Código Civil brasileiro, que estabelece as ruas e praças do país como “bens públicos de uso comum do povo”, de usufruto inalienável. Revoltada com a medida, a juventude belo-horizontina realizou, em janeiro do ano seguinte, a primeira edição da Praia da estação, evento que nos verões seguintes se consolidaria como um dos mais exemplares movimentos populares de reocupação político-festiva de um espaço público citadino no país.

Na esteira daquele movimento primordial, toda a região acabou se reconfigurando no decorrer da última década, com a instalação de novos equipamentos culturais – como a Escola Livre de Artes e o Centro de Referência da Juventude (CRJ) – e o amadurecimento dos já existentes – como o espaço CentoeQuatro e o próprio Centro Cultural UFMG –, constituindo um complexo que hoje é oficialmente denominado como Zona Cultural Praça da Estação.

A UFMG fez dessa tomada jovem do chamado “baixo centro” de Belo Horizonte o ponto de partida para a edição deste ano do seu Festival de Verão, que terá programação integralmente gratuita. O Festival será realizado de 3 a 6 de fevereiro, e suas atividades terão lugar no Centro Cultural da instituição e no Centro de Referência da Juventude, em uma espécie de pré-carnaval. 

“Ao longo da última década, a Zona Cultural Praça da Estação foi pouco a pouco sendo escolhida como ‘território comum’ para movimentos culturais diversos, que vêm de diferentes pontos da cidade – e, quando falo em cidade, é numa perspectiva expandida, que abrange toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte”, lembra o professor Fernando Mencarelli, diretor de Ação Cultural da UFMG.

Na esteira daquele movimento primordial, toda a região acabou se reconfigurando no decorrer da última década, com a instalação de novos equipamentos culturais.

“É uma região que foi tomada por esses jovens para ser um território de encontros, de troca, de manifestação da diversidade. Por ali esses movimentos foram se reunindo e gerando uma dinâmica nova de contaminação, que trouxe uma diversidade e pluralidade de sujeitos bastante singular”, afirma o diretor. “Definimos como tema da edição a ideia de CorpoCidade, pensando Belo Horizonte como esse corpo extenso que, de alguma maneira, encontra-se na região da Praça da Estação: um corpo diverso, plural, político.”

Intervenção artística sobreposta em foto de rua no “baixo centro”, que integra a exposição Territórios populares em cartaz no Centro Cultural
Intervenção artística sobreposta em foto de rua no “baixo centro”, que integra a exposição 'Territórios populares', em cartaz no Centro Cultural Divulgação

Mencarelli destaca a preocupação de não propor aos jovens um festival que fosse operacionalmente conservador, vertical, burocrático, e, sim, mais democrático, de processos compartilhados. “A gente tentou produzir um festival em que essa juventude fosse protagonista das ações, e não apenas um público para elas. O evento tem ações não só direcionadas para essa juventude, mas também pensadas e feitas por ela e com ela”, diz o professor da Escola de Belas Artes.

“A UFMG está fisicamente presente naquela região, seja pelo seu Centro Cultural, seja pelos inúmeros projetos que apoia, e o Festival de Verão sinaliza o nosso desejo de estar ainda mais presente. Podemos e queremos somar, mas, para somar, é preciso escutar. Com esta edição do Festival, a UFMG busca se integrar a esse movimento, mas partindo, antes de tudo, da escuta”, afirma.

Fala e escuta

O CRJ receberá rodas de conversa diárias, sempre às 15h30, com as seguintes temáticas: Saúde mental e juventude virtual: gênero, raça e subjetividades, no dia 3; Pop político: funk e rap em Belo Horizonte, no dia 4; Superando o racismo e a transfobia: ações afirmativas e permanência na universidade, no dia 6. No dia 5, haverá dois encontros para essas trocas de ideias: às 13h30, com o tema Corpos, cidade e carnaval: narrativas visuais e políticas, e às 15h30, sobre Relações de gênero, sexualidades e cuidados com a saúde.

No mesmo dia, das 18h às 21h, o CRJ abriga o estande Trocando ideia com a galera da PrEP 15-19, ambiente de acolhimento criado para que os interessados possam conversar com educadores sobre métodos de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis e o acesso às redes de apoio existentes.

Outro destaque é a edição especial da PeriFeira – iniciativa de economia solidária que propicia exposição e venda de artigos produzidos por jovens empreendedores da periferia de Belo Horizonte e região metropolitana – que o Festival de Verão sediará nos dias 5 e 6. Realizado mensalmente no CRJ, o evento costuma contar com grande variedade de produtos, que vão de artigos de moda à papelaria, passando pelo artesanato, cosméticos e alimentação. Nesta edição especial, dez dos 35 estandes da feira foram reservados para expositores da comunidade da UFMG.

Programação

Música, exposições...

A abertura do Festival ficará a cargo de Dona Jandira, que se apresenta na segunda-feira, dia 3, às 18h30, no Centro Cultural UFMG. No show, ela  comemora 15 anos de carreira. No mesmo horário, o Centro Cultural inaugura a exposição Movências: CorpoCidade, que leva para o ambiente de galeria a produção – em fotografia, performance, escultura, ilustração, pintura, instalação – de 14 jovens artistas de trajetórias relacionadas à Zona Cultural Praça da Estação.

Três outras mostras estarão em cartaz no Centro Cultural: Territórios populares, sobre os processos de disputas territoriais no centro de BH, Dona Jandira: 81 anos de vida, poesia e música, em homenagem à trajetória singular da cantora, e Epistemologias comunitárias: arte contemporânea e autoria negra.

Competição Verão vogue bailão será ponto de celebração da cultura Ballroom
Competição 'Verão vogue bailão' será ponto de celebração da cultura Ballroom Carina Castro

Após o show de Dona Jandira, o público deve se deslocar para o CRJ, onde, às 20h, o artista da dança Thiago Granato – que promove “experiências de transformação política através da inovação estética” – e dançarinos vão apresentar a performance Lava, resultado de uma residência de criação coreográfica que vem sendo desenvolvida, desde meados de janeiro, por meio de  parceria entre o Festival de Verão UFMG e o Verão Arte Contemporânea 2020.

teatro, dança...

Terça e quarta-feira serão dias de teatro no Festival de Verão. No dia 4, quem comanda o espetáculo é a Companhia Negra de Teatro, que apresenta, às 19h, no auditório do Centro Cultural, a peça Chão de pequenos. Por meio da história de dois jovens marcados pela orfandade, a montagem põe em discussão os temas da adoção, do preconceito, da intolerância e do abandono.

No dia 5, no mesmo horário e local, o grupo de teatro Mulheres de luta, formado por moradoras da ocupação Carolina Maria de Jesus, apresenta o espetáculo AntígonaS, que retoma a famosa história registrada por Sófocles como alegoria para a luta feminina contra as injustiças. Na mitologia grega, Antígona – filha de Édipo e Jocasta – foi condenada pelo imperador Creonte a ser enterrada viva porque tentou resgatar o corpo insepulto de seu irmão e oferecer a ele um rito fúnebre digno.

Espetáculo Chão dos pequenos: discussão sobre abandono e preconceito
Espetáculo 'Chão dos pequenos': discussão sobre abandono e preconceito Lucas Brito

Ainda no dia 5, às 20h, o CRJ recebe o Sarau de quebrada, que reúne poetas da cena belo-horizontina do slam – competição em que poetas leem ou recitam trabalhos originais ou alheios –, que se valem de seus corpos e vivências para produzir e expressar sua arte.

e festa!

No dia 6, a arena do CRJ receberá, às 20h, o evento-competição Verão vogue bailão, que celebra a cultura Ballroom e as festas-refúgio que, desde meados do século 20, ocorrem pelo mundo como espaços seguros para a população LGBTI+.

Durante a festa, o bailarino e coreógrafo Tuca Pinheiro e o núcleo de pesquisa em artes cênicas Corpolítico vão realizar a performance A urgência da ineficiência – o corpo disponível, resultado de residência homônima ministrada por Tuca com os artistas do núcleo. Em encontros iniciados antes mesmo do Festival, os participantes se propuseram a desenvolver um processo de ordem não vertical, subsumindo erros em meio ao todo artístico, de forma a produzirem, a partir disso, novas perspectivas criativas.

Casas para a arte

Residências artísticas serão novidade nesta edição do Festival de Verão UFMG. Elas funcionarão como espaços para que profissionais de carreira consolidada desenvolvam trabalhos com artistas e grupos que já vêm atuando na Zona Cultural Praça da Estação. Diferentemente das oficinas, as residências não demandaram inscrições: seus participantes foram selecionados e convidados pela própria organização do Festival.

A poeta e professora da Faculdade de Letras Emília Mendes, que coordena o Laboratório de Edição (Labed) da unidade, e o 62 Pontos, coletivo mineiro de pesquisa e produção gráfica em técnicas analógicas, vão ministrar a residência De quebrada: da oralidade à poesia impressa. Nela, 15 poetas do slam vão aprender os processos e as ferramentas necessárias para que eles mesmos possam produzir seus livros com qualidade gráfica e editorial.

Além disso, aproveitando a estrutura e os materiais tipográficos existentes no Centro Cultural UFMG, eles serão apresentados à linguagem e à técnica dos tipos móveis, em abordagem contemporânea de suas possibilidades. No decorrer dos próximos meses, a residência vai resultar na publicação, pelo Labed, da coletânea De quebrada, com poemas dos participantes. 

No campo da dança, além da residência de Tuca Pinheiro, a badalada coreógrafa Ohana Lefundes vai ministrar, em modelo workshop, uma residência de funk e outros estilos para bailarinos profissionais e dançarinos que frequentam e ensaiam no CRJ. O 14º Festival de Verão UFMG ainda contará com três aulas abertas de danças urbanas, que serão ministradas também no CRJ, sempre às 18h: funk (dia 4), com Ohana Lefundes; dancehall (dia 5), com Marcelo Mendes, e passinho (dia 6), com Dudu Sorriso.

Ewerton Martins Ribeiro