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Brinde ao excesso

Editora UFMG lança tradução de 'Embriaguez', ensaio em que o filósofo francês Jean-Luc Nancy reflete sob(re) efeitos do consumo de álcool no espírito humano

Às vésperas do carnaval brasileiro, festa que se destaca, entre outras coisas, pelo aumento no consumo de álcool, a Editora UFMG lança a primeira tradução para o português de Embriaguez, ensaio em que o filósofo francês Jean-Luc Nancy aborda os efeitos do consumo na mente e no espírito do homem. Em um registro que mais parece fruto da influência criativa do álcool sobre o homem do que de uma reflexão metódica tradicional, a obra intercala as epifanias filosóficas do autor com argumentos que outros grandes pensadores elaboraram sobre o tema.

“Quem lê ou já leu Jean-Luc Nancy sabe que ele sempre nos deixa uma impressão de torpor ou êxtase filosófico”, diz Vera Casa Nova, professora aposentada da Faculdade de Letras (Fale) e responsável pela tradução, em parceria com a professora Juliana Gambogi, também da Fale. Casa Nova destaca o caráter singular que a vocação estética de Jean-Luc Nancy confere ao seu pensamento. “Traduzir seus textos é acessar um movimento de pensamento contemporâneo que habita um viés poético de rara beleza”, celebra.

Nancy: texto para ler, calar e embriagar-se
Nancy: texto para ler, calar e embriagar-se Georges Seguin | CC BY-SA 3.0

Autora de Fricções – traço, olho e letra (Editora UFMG), entre outras obras, Vera Casa Nova classifica o texto de Jean-Luc Nancy como uma produção que, entre racionalidade e passionalidade, sobriedade e ebriedade, chega a se oferecer menos ao comentário que à (re)citação: “texto para recitar”, “não para comentar”, escreve a professora e poeta na apresentação do volume; um “texto bêbado”, como que feito para “ler e calar, ler e embriagar-se”, registra.

No livro, Jean-Luc Nancy vai tratar da embriaguez como uma “condição do espírito” que “faz sentir sua absoluteza, isto é, sua separação com tudo o que não é espírito".

Presença de espírito

No livro, Jean-Luc Nancy vai tratar da embriaguez como uma “condição do espírito” que “faz sentir sua absoluteza, isto é, sua separação com tudo o que não é espírito – tudo o que é condicionado, determinado, relativo e encadeado”, sugerindo, assim, a sobriedade como uma opção não desejável, ao menos não permanentemente. Para o filósofo, “a embriaguez é, em si mesma, a absolutização, o desencadeamento, a ascensão livre até o fora do mundo. Ela é o gozo: a identidade dada, no abandono, ao impulso que desliga o idêntico, o corpo resumido ao seu espasmo, o arrancar de um suspiro ou de um estouro, clamor entre lágrima e larva”.

Nancy considera que a embriaguez “exprime” algo como “o suco que se propaga a partir dos licores que absorve. Ela extrai, exsuda, distila, o que significa que ela concentra, aquece, evapora e sublima. O sublimado é o espírito, o impalpável, o imaterial. Ele é inspiração, sopro, fora do lugar e fora do tempo, presente concentrado em si e que se chama presença de espírito: toque vivo instantâneo de uma verdade revelada”, ele diz. Escreve o filósofo: “A embriaguez revela – ou seja, ela revela a si mesma e não a um segredo. Ela se revela como o ímpeto e o impulso do espírito: entusiasmo, proximidade divina, transbordamento do saber, efusão da graça.”

Efeitos adversos

Contudo, a despeito desse tom, laudatório em geral, o filósofo não se furta de ao menos aludir aos efeitos possivelmente adversos da embriaguez quando dos excessos, lembrando – com Cortázar – que “no extremo da embriaguez só se revela a própria embriaguez”. Escreve Nancy: “Não é fácil estabelecer a diferença entre a dependência e a libertação, o peso e a leveza, a decadência e o sublime. Não é fácil separar a tristeza ou a cólera ébria da alegria dionisíaca que engrandece aquele que a experimenta.”

Seguindo essa trilha, Nancy lembra que “no mesmo ponto do absoluto onde se dissolvem exterioridade e interioridade, ali se produz também o excesso” do qual “a queda livre não está distante”. Contudo, cumprida essa espécie de cota de politicamente correto, o filósofo vai logo voltar ao tom encomiástico que atravessa toda a sua obra e dizer que, se por um lado nos aproxima da queda, por outro, “o excesso é um acesso – ao inacessível” – que todos, em alguma medida, perseguimos, como que em busca de “uma iluminação mais originária, uma ebriedade de revelação”.

Livro: Embriaguez
Autor: Jean-Luc Nancy
Tradução: Vera Casa Nova e Juliana Gambogi
Revisão técnica: Márcia Arbex
Editora UFMG
R$ 21 / 60 páginas

Ewerton Martins Ribeiro