Neste ano, comemora-se o centenário de nascimento de Clarice Lispector (1920-1977), e uma obra publicada pela Editora UFMG analisa a literatura da escritora ucraniana-brasileira sob o viés de sua relação com as artes visuais. “O interesse [de Clarice] pela criação artística emerge de sua biografia, pontilha seus textos jornalísticos, permeia seus contos e romances, tecendo uma série de conexões que propiciam uma entrada particularmente convidativa para a leitura crítica”, afirma a professora Solange Ribeiro de Oliveira, emérita da Faculdade de Letras e autora de Alvoroço da criação: a arte na ficção de Clarice Lispector.

“Antes de mais nada, pinto pintura. Acho que o processo criador de um pintor e do escritor são da mesma fonte. Quando eu escrevo, misturo uma tinta a outra, e nasce uma nova cor.”
(Clarice Lispector)

“A relação de Clarice Lispector com as artes durou tanto quanto sua vida”, salienta a professora. Segundo ela, as alusões às artes visuais encontradas em suas obras “mostram-se particularmente significativas como metáforas de uma condição existencial: a perplexidade da consciência diante do mundo exterior, a indissolúvel unidade entre sujeito e objeto, a fascinação pelo mistério da pura existência, a sedução da inatingível ‘coisa em si’, ‘a coisa na própria coisa’, ‘o neutro’, ‘o insosso’, ‘o it’”.

O livro, que tem prefácio de Fábio Lucas, decano da literatura em Minas Gerais, será lançado em evento no dia 28 de março, das 11h às 14h, na Livraria Quixote, que fica na Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, em Belo Horizonte.

Pictural

Solange Ribeiro aborda a obra de Clarice com base no conceito de pictural, definido por Liliane Louvel – professora emérita de literatura da Universidade de Poitiers, na França – como “o surgimento de uma referência às artes visuais, sob formas mais ou menos explícitas, com valor de citação, produzindo um efeito de metapicturalidade textual”. 

De acordo com Solange, essa descrição pictural atua no âmbito do texto como um indício ou rastro, uma evocação, uma sombra, um duplo da pintura evocada, em que, abruptamente, o leitor percebe uma referência a uma escola de pintura ou mesmo tem a impressão de “ver”, por meio da leitura, a imagem de um quadro. “Nesse processo, o pictural assume duas configurações: a écfrase, verbalização do encontro de uma personagem com uma obra visual, e o efeito quadro, quando, de repente, o leitor detecta uma referência a uma obra de arte, a um período ou gênero artístico”, explica a professora. “Às vezes enganadoramente curtas, descrições ecfrásticas e efeitos quadro assumem uma importância diretamente inversa à sua extensão, exercendo diferentes funções: sinalizar a postura do autor implícito, servir à urdidura da história, à exposição do tema ou à caracterização da personagem.”

Princípio único

Solange lembra que Clarice também se dedicou à prática da pintura. A escritora produziu 22 quadros ao longo da vida (com um pico de produção em 1975, quando pintou 16 obras), a maior parte sobre madeira de pinho-de-riga. Segundo Solange, essa coleção reúne “criações abstratas, algumas de tons sombrios, outras vivamente coloridas, [que] denunciam o percurso do pincel pelas nervuras da madeira, de modo a ressaltar sua textura original”. 

A atuação de Clarice como pintora é também explorada em outro livro da Editora UFMG, Retratos em Clarice Lispector – literatura, pintura e fotografia, ensaio que se originou da tese de doutorado em teoria literária do pesquisador Ricardo Iannace. No volume, que traz, em sua abertura, a reprodução das 22 pinturas da escritora, Iannace defende, entre outras coisas, que, na trajetória de Clarice, “um princípio único governa literatura e pintura”, conjugando o pictórico e a prosa de ficção.

Livro: Alvoroço da criação: a arte na ficção de Clarice Lispector
Autora: Solange Ribeiro de Oliveira
Editora UFMG
148 páginas / R$ 43 

Livro: Retratos em Clarice Lispector – literatura, pintura e fotografia
Autor: Ricardo Iannace
Editora UFMG
R$ 36 / 184 páginas