Aberta para balanço

Educação antropofágica

Sugerimos, como hipótese, considerar a educação antropofágica como proposta pedagógica relevante e extremamente necessária para a vida em plenitude criativa. Por antropofagia, entendemos a habilidade modernista e moderna de construir o novo em diálogo criativo com a tradição. Por tradição, compreendemos aquele legado que se presentificou para o bem da razão e da emoção articuladas. Modernidade, em linhas gerais, significa a novidade movida à historicidade. No universo brasileiro, destacar o modernismo como modernidade específica, em escala literária e cultural, significa reconhecer o importante papel de ações artísticas na relativização do horizonte erudito pela sabedoria do coloquialismo popular, irreverente e inventivo. 

Há que se considerar também o papel da ironia nessa projeção expressiva, que possibilitou fundamentar um dispositivo intelectual e emocional arejado em matéria de humor e sátira. Foi possível, partindo, por evidência consagrada, da Semana de Arte Moderna de 1922, contar publicamente “segredos de liquidificador” que vitaminaram o Brasil, evitando a fórmula ufanista-romântica. Assim, o senso crítico voltado para o “Brasil Profundo” saiu fortalecido nas construções literárias e artísticas daquele tempo, desdobrando-se positivamente na contemporaneidade. A nação se agigantou graças a um estatuto estético-político mais localizado e universal, ao mesmo tempo. Fez-se diálogo fecundo com as vanguardas europeias, com desenvoltura mais independente. A subserviência ideológica foi deixada mais de lado. Entrou em campo um tipo de originalidade, que angariou combinações inusitadas de autorias múltiplas.

À luz do tropicalismo autêntico desenvolvido por Tom Zé, é possível ler o modernismo como excelência do atrito, marcada por duas linhas de força criadora: “a era autoral” e “a era do plagicombinador”. Penso, nesse caso, no saboroso slogan promovido no Movimento Antropofágico, que serviu de linha coletiva e, portanto, orgânica para orientar as autorias modernistas: “Tupi or not tupi. That’s the question!”. Desse modo, antropofagicamente, Shakespeare e Lima Barreto foram assimilados com despojamento inaugural impressionante. Em relação ao dramaturgo inglês, ficou para a história o dilema clássico trazido por Hamlet: “To be or not to be! That’s the question!”. O adágio em destaque põe em cena o questionamento existencial da condição humana: uma espécie de pêndulo que ora gravita para o sentido da autenticidade, ora caminha para o polo da dissimulação. Angustiado com a podridão imoral que tomava conta do Reino da Dinamarca, Hamlet percebeu que sua família, tomada pela cobiça do poder, diminuiu a chama do “ser” para ficar com os holofotes do “ter”, isto é, do “não ser”.

Os modernistas, tais como Mário e Oswald de Andrade, trouxeram esse clima especulativo para revisar a história brasileira, repercutindo um ângulo rico no tocante à poética da diversidade: nós, brasileiros, assumiremos autenticamente nossa formação indígena com respeitosa alteridade ou continuaremos a promover genocídios impostos aos povos originários, desde a bárbara colonização que se instalou em nossas terras? Convém destacar que o tema já havia sido trabalhado pelo autor pré-modernista Lima Barreto, ao construir corajosamente o personagem Policarpo Quaresma, um defensor apaixonado do idioma tupi-guarani como língua autenticamente brasileira. 

Abrangente, a antropofagia como virtude educacional pode também interligar os campos da política e do esporte. O sloganYes, we can!” deu sustento simbólico à vitória de Barack Obama como primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos. Em bom português, o referido lema significa: “Sim, nós podemos!”. Uma bela estratégia de marketing trouxe à tona o empoderamento coletivo representado pela ascensão da comunidade afrodescendente ao poder central que também lhe é de direito. Foi a realização, nas urnas, do desejo libertário do grande líder Martin Luther King: “Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. 

No futebol, a torcida do Clube Atlético Mineiro (CAM) apropriou-se antropofagicamente do refrão estadunidense para bordar o canto Yes, we CAM.!. Construiu-se o mantra perfeito que levou o Galo ao maior título de sua história: a conquista da Taça Libertadores da América, em 2013. Criativamente, a torcida consolidou o arquétipo de que o Clube Atlético Mineiro logo representa potência coletiva triunfante. É justo perceber, nessa ordem, o diálogo frutífero, envolvendo esse fato contemporâneo e a tradição salutar. Nos anos 1970, em plena ditadura militar, o ídolo atleticano Reinaldo comemorava seus gols reproduzindo o gesto do movimento Panteras Negras (coletivo empenhado na luta contra o racismo nos Estados Unidos): o artilheiro erguia o braço e cerrava o punho.

Em termos de pensamento crítico, as reflexões aqui arroladas ganham alto estofo no livro Vale quanto pesa (1980), escrito por Silviano Santiago. A educação antropofágica rejeita o binômio fonte-influência (paradigma autocrático) para abraçar o livre fluxo da confluência (paradigma democrático). Nas palavras do eminente pesquisador: “faz-se necessário que o primeiro questionamento das categorias de fonte e influência, categorias de fundo lógico e complementar usadas para a compreensão dos produtos dominante e dominado, se dê por uma força e um movimento paradoxais que, por sua vez, darão início a um processo tático e desconstrutor da literatura comparada, quando as obras em contraste escapam a um solo histórico e cultural homogêneo”. Portanto, graças à educação antropofágica, colocou-se em xeque “a verdade da universalidade colonizadora”, que, por sua vez, promoveu “a verdade da universalidade diferencial”.  

Marcos Fabrício Lopes da Silva, professor da Faculdade JK, DF