O preço da floresta

Luzes sobre Luzia

Com participação de pesquisadores da UFMG, sequenciamento genético dos restos humanos de Lagoa Santa revela que essas populações compõem a diversidade dos indígenas sul-americanos

Detalhe de amostragem do osso petroso para datação por carbono 14 e sequenciamento de DNA de crânio do acervo do Museu da Lapinha
Detalhe de amostragem do osso petroso para datação por carbono 14 e sequenciamento de DNA de crânio do acervo do Museu da Lapinha Luiz Souza / UFMG

Dados inéditos obtidos pela análise dos genomas completos de ossos de 15 nativos americanos, seis dos quais com mais de 10 mil anos – incluindo fósseis de Lagoa Santa, Minas Gerais –, revelam que a história da ocupação das Américas nos milênios que se seguiram à colonização inicial é muito mais complexa do se imaginava. Essa descoberta é fruto do  trabalho desenvolvido por um grupo internacional de cientistas, liderado pelo professor Eske Willerslev, catedrático e pesquisador das universidades de Cambridge (Reino Unido) e de Copenhague (Dinamarca).

Três pesquisadores da UFMG estão entre os autores do artigo Early human dispersals within the Americas, publicado na revista Science no último dia 8. Fabrício Santos, professor do Departamento de Biologia Geral, e o mestrando em genética Thomaz Pinotti analisaram o cromossomo Y e o DNA mitocondrial dos indivíduos antigos e participaram da discussão e da elaboração dos diferentes modelos de povoamento. O professor Luiz Souza, da Escola de Belas Artes, aplicou conceitos da ciência da conservação de bens culturais ao campo do patrimônio arqueológico e genético. 

“Esse estudo difere de pesquisas anteriores porque o grande avanço da metodologia nos últimos três anos também possibilitou o sequenciamento genômico de restos ósseos de áreas tropicais. Antes disso, todo material antigo com genoma sequenciado com sucesso era de regiões temperadas”, explica Fabrício Santos.

O sequenciamento genético dos restos humanos de Lagoa Santa é de especial interesse para a comunidade científica, visto que, por sua morfologia craniana distinta, essa população – às vezes chamada de Povo de Luzia – já foi polemicamente descrita como mais próxima de povos melanésios ou até de africanos.

No entanto, os dados da pesquisa mostram, de forma inequívoca, que, apesar de não parecerem, essas populações compõem a diversidade genética dos índios sul-americanos. Além disso, o estudo indica, pela primeira vez, que, além dos conhecidos deslocamentos populacionais em direção ao sul do continente, outro movimento em larga escala ocorreu, cerca de oito mil anos atrás, da Mesoamérica (México e América Central) para as Américas do Sul e do Norte.

Os pesquisadores encontraram sinais dessa migração no genoma de todas as populações indígenas do continente em que dados genéticos estão disponíveis. O estudo é o primeiro realizado com DNA antigo de indivíduos da América do Sul, em razão da dificuldade de preservação de material genético de fósseis de regiões de clima tropical. Luiz Souza ressalta que são necessárias mais pesquisas na área, de forma a balancear a conservação do patrimônio arqueológico, finito e raro, e o caráter destrutivo da amostragem do DNA antigo.

Lagoa Santa
O material genético analisado provém de uma série de célebres fósseis humanos do continente, entre os quais os de Lagoa Santa – população da qual fazia parte Luzia, o mais antigo fóssil brasileiro – e o homem de Spirit Cave, de Nevada (EUA), a múmia natural mais antiga do mundo. Os indivíduos de Lagoa Santa são muito importantes no estudo, pois foram os primeiros esqueletos antigos encontrados nas Américas, no século 19, pelo explorador e naturalista dinamarquês Peter Lund, cujos achados foram citados nos livros de Charles Darwin e de outros autores. Os fósseis sequenciados nesse trabalho são provenientes da Caverna do Sumidouro, no município de Pedro Leopoldo, enviados por Lund, desde sua descoberta, ao Museu de História Natural de Copenhague.

As amostras da coleção de Peter Lund tiveram importância fundamental na discussão do povoamento da América na época, e o sequenciamento genético desse material as coloca novamente na vanguarda dessa linha de pesquisa. Os dados genéticos demonstram que as mudanças de crânio nos povos antigos ocorreram ao longo do tempo e de forma paulatina, mas nem todos mudaram da mesma maneira, pois ainda existem indígenas americanos com morfologia parecida com a do Homem de Lagoa Santa. Assim, explica Fabrício Santos, “é um equívoco achar que todos os indígenas atuais têm morfologia mongolizada. Alguns se parecem morfologicamente com Luzia, conforme publicamos em artigos anteriores”.

Patrimônio arqueológico
Segundo os autores do artigo, os sítios arqueológicos de Lagoa Santa são únicos no continente em razão da abundância de esqueletos, em bom estado de preservação, datados do período holoceno inicial. Existem mais esqueletos antigos e recuperados nessa região do que nos territórios dos Estados Unidos e do Canadá juntos. “O Museu Arqueológico da Região de Lagoa Santa, localizado ao lado da Gruta da Lapinha, corria risco de ser demolido há alguns anos”, lembra o professor Luiz Souza. Sua preservação, informa ele, deu-se graças a uma ação civil pública, “encabeçada pela sociedade civil em Lagoa Santa e apresentada na justiça pelo Ministério Público Federal”.

O material do Museu da Lapinha vai possibilitar a continuidade das pesquisas, com datação por carbono 14 e sequenciamento genético de amostras de ossos de crânios retiradas de lá no ano passado e já em processo de análise na Dinamarca. “Esse estudo põe novamente o Brasil no centro da discussão da ocupação sobre o continente americano”, afirma o pesquisador Thomaz Pinotti.

[Versão ampliada desta matéria foi publicada no Portal UFMG, em 9/11/2018]

Ana Rita Araújo