Ars Nova, da UFMG: livro conta ‘a história e as histórias’ de um símbolo da música coral no Brasil
Assinado pelos professores Ana Maria Lana e Sérgio Cirino, com base em documentos e com participação afetiva de muitas outras pessoas, o volume aborda os primeiros 50 anos do grupo

No ano de 1973, o Ars Nova – Coral da UFMG viajou pela segunda vez à Europa, para participar de concurso na cidade italiana de Arezzo. O grupo aproveitou para agendar uma turnê que incluía, entre outras cidades, Lyon, na França, e Genebra, na Suíça. Com intermediação da Cruz Vermelha, o Coral foi acomodado, em Genebra, em um dos muitos bunkers construídos em todo o país, na década de 1960, para proteger os cidadãos em caso de guerra nuclear. Ele ocupava um grande espaço subterrâneo e era até razoavelmente confortável, dadas as circunstâncias. Mas passar quatro noites ali foi um tanto complicado. Dois coristas, tomados por claustrofobia por causa de uma porta blindada de cerca de um metro de espessura, preferiram dormir do lado de fora dos quartos, perto do acesso à rua. Os outros integrantes da delegação, que suportaram bem a sensação de confinamento, tiveram que conviver com o incômodo causado pelo cheiro dos queijos comprados por um dos cantores.
Esse é um dos inúmeros casos que são contados, há décadas, pelos antigos integrantes do Ars Nova, o coral criado em 1959 e ainda em atividade. Alguns deles, ao lado de informações diversas, fotografias e depoimentos, compõem o livro Ars Nova – Coral da UFMG: sobre a sua história, suas pessoas e suas histórias (1959-2008), recém-lançado pela Dialética Editora. Assinada pela professora Ana Maria Arruda Lana, da Faculdade de Medicina, e pelo professor Sérgio Dias Cirino, da Fafich, ex-integrantes do grupo, a obra é resultado de mais de dez anos de pesquisas, regate documental, curadoria de imagens e entrevistas.
Considerado um símbolo da música coral brasileira – o grupo representou a UFMG e o Brasil em muitos palcos dentro e fora do país, com reconhecida excelência artística –, o Ars Nova teve suas atividades suspensas durante quatro anos, a partir de 2009. O livro trata dos primeiros 50 anos de existência do coral. “Ao longo de sua história”, escrevem os autores, “o Ars Nova destacou-se por sua qualidade técnica, repertório refinado e protagonismo na cena coral brasileira. Contribuiu sensivelmente na formação profissional de excelência de dezenas de cantores e maestros, venceu concursos, ganhou prêmios em festivais internacionais, lançou discos e representou o Brasil em turnês pela Europa, América do Sul e os Estados Unidos.”

Não se trata apenas de uma obra sobre música, ressalta Sérgio Cirino, mas de um livro sobre “afeto, vida coletiva, pertencimento e memória”. Ele explica que o volume celebra algumas das principais conquistas do grupo e “homenageia centenas de pessoas que construíram a história do Ars Nova, notadamente seus regentes e seus cantores”. O Ars Nova teve três regentes titulares ao longo de sua história, cada um com uma contribuição marcante. Sérgio Magnani, fundador do coral na década de 1950, iniciou sua trajetória. Foi, porém, sob a liderança de Carlos Alberto Pinto Fonseca, a partir de 1963, que o grupo alcançou maiores desenvolvimento técnico e projeção internacional, consolidando-se como um dos principais coros do Brasil. Com a aposentadoria do maestro Carlos Alberto, em 2003, Rafael Grimaldi assumiu a regência e teve o importante papel de manter o coro em atividade até 2008.
Produção, pessoas, memórias
Os autores fazem, no primeiro capítulo, breve descrição da história do Ars Nova, abordam a sua produção, com destaque para os primeiros 15 anos – desse período, eles tiveram acesso a registros mais detalhados e precisos. Os dois capítulos seguintes são dedicados às pessoas e suas memórias, a começar pelos maestros, enfatizando suas formas de trabalhar e as características pessoais relevantes na sua relação com o coro. A grande comunidade de ex-integrantes do coral também é abordada no capítulo 3, sem esquecer representantes da comunidade que já morreram e tiveram papéis relevantes na história do Ars Nova.
As histórias – divertidas, tristes, emocionantes e peculiares – relatadas pelos ars novenses estão no quarto capítulo. A maioria delas ocorreu em viagens. Até 2008, o Ars Nova fez concertos em 79 cidades de 12 estados brasileiros e em 66 cidades de 17 países.
Na parte final do volume, estão listados os mais de 400 cantores que passaram pelo coro no primeiro meio século de sua história. Aí estão incluídos nomes como a meio-soprano Sylvia Klein, que cantou em óperas e gravou discos no Brasil e no exterior e difundiu a música brasileira em longa temporada em Berlim; o barítono Sebastião Teixeira, também cantor de ópera, membro do Coral Lírico do Theatro Municipal de São Paulo; o tenor Marcos Thadeu, hoje regente do Coro Acadêmico e preparador do Coro principal da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), e a soprano Edna D’Oliveira, presença constante em óperas pelo Brasil e professora de canto do Instituto Baccarelli, localizado na comunidade de Heliópolis, na capital paulista. Também integram essa relação, naturalmente, a contralto Ana Maria Lana e o baixo Sérgio Cirino, autores do livro.

O repertório do Ars Nova incluiu, ao longo das décadas, obras de gêneros e épocas diversas, como o moteto Jesu meine Freude, de J.S. Bach (1685-1750), do barroco alemão, Ave Maria e Christus factus, de Anton Bruckner (1824-1896), do romântico alemão, a Missa afro-brasileira, de Carlos Alberto Pinto Fonseca – e outras numerosas obras dele inspiradas na cultura afro-brasileira –, e Lamentaciones de Jeremias Profeta, de Alberto Ginastera (1916-1983), representante dos períodos moderno e contemporâneo. O Coral cantou e gravou também peças de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), algumas em primeira audição mundial, e grande número de peças do folclore brasileiro e de vários outros países.

Estreia internacional
Um dos momentos decisivos da história do Ars Nova foi a incorporação do coral à UFMG, em 1964 – antes, ele era vinculado à União Estadual dos Estudantes (UEE) –, na gestão do então reitor Aluísio Pimenta. “A partir daí o coral se firmaria definitivamente”, diz Ana Maria Lana. Ela destaca também a primeira viagem internacional, em 1969: o grupo fez uma turnê nos Estados Unidos e participou do 2º Festival Internacional de Corais Universitários, no Lincoln Center, em Nova York, uma das mais importantes salas de concerto do mundo. Foi o primeiro contato com corais de outras culturas. Outra situação crucial reúne a aposentadoria compulsória, em 2003, e o falecimento de Carlos Alberto Pinto Fonseca, três anos depois. Foi o início do declínio do Ars Nova, que culminou na suspensão das atividades.
Ana Lana e Sérgio Cirino participaram do esforço de reorganização do acervo do Ars Nova, que estava parcialmente danificado, em razão da mudança de sua sede, em meados da década de 2000, do Edifício Acaiaca para o Conservatório UFMG, e da interrupção das atividades. “O contato com o material do acervo nos fez viajar na memória e, ao mesmo tempo que representou um grande desafio no sentido de sua organização e preservação, foi motivo de muitos momentos de empolgação e surpresa com o que encontramos”, afirmam os autores no texto de apresentação do livro. Eles se depararam com correspondência variada, relatórios, cartazes, partituras, recortes de jornais com notícias e comentários de críticos de arte, troféus, uniformes, registros em áudio e vídeo e centenas de fotografias. Coordenado por Cirino e Ana Lana, o trabalho com o acervo do Ars Nova foi transformado, em 2012, em projeto de extensão da UFMG. O livro começou a ser escrito durante o isolamento social imposto pela pandemia de covid-19.

Entre os comentários que Ana Maria Lana enviou para esta reportagem desde Queluz, Portugal, onde reside temporariamente, sobressaem alguns dos aspectos que ela considera os mais marcantes de todo o processo que levou à publicação do livro. Ela cita o contato com a grande comunidade de ex-integrantes do Ars Nova – e a forma como acolheram a proposta do livro e colaboraram com informações e materiais –, “a percepção da importância que o Ars Nova teve na nossa vida e na vida de tanta gente” e a constatação da riqueza do acervo do coral, “que sofreu perdas, mas mantém enorme valor histórico”.
Sérgio Cirino ressalta que, mais do que relatar uma trajetória, a publicação do livro “reafirma o papel da universidade pública na preservação da memória artística e cultural”. No prefácio, o professor João Antonio de Paula, da Faculdade de Ciências Econômicas, um dos maiores conhecedores da história da UFMG, corrobora: “A longa e profícua história do Ars Nova deve-se, além da excepcional qualidade de seus regentes e cantores, ao fato de estar ligada a uma universidade pública que está entre as melhores do país, que sempre entendeu que a sua plena realização institucional dependia de articular o ensino, a pesquisa e a extensão como partes do processo geral da cultura, como instâncias decisivas para a plena emancipação humana e social.”
Livro: Ars Nova – Coral da UFMG: sobre a sua história, suas pessoas e suas histórias (1959-2008)
Autores: Ana Maria Arruda Lana e Sérgio Dias Cirino
Editora: Dialética
242 páginas | R$ 69,90 (impresso) e R$ 48,93 (e-book)