Opinião

[Opinião] A série 'Painkiller' e os riscos da sacralização da medicina

Ao refletir sobre os efeitos da epidemia dos opioides, Andityas Matos defende uma ciência ‘capaz de entender o sentido social da dor, do mal-estar psíquico e da diferença’

Taylor Kitsch está no elenco da série 'Painkiller', da plataforma Netflix
Taylor Kitsch está no elenco da série 'Painkiller', da plataforma Netflix Foto: Keri Anderson | Netflix

Em seis episódios, Painkiller, a nova minissérie da Netflix, de título ao mesmo tempo irônico e macabro, conta, por meio de vários pontos de vista, o surgimento e a expansão da chamada epidemia de opioides nos Estados Unidos. Acompanhamos a narrativa a partir da criação do OxyContin por Richard Sackler, médico e bilionário americano, presidente da Purdue Pharma, que posteriormente será conhecido como “o mais perverso traficante da história”.

O OxyContin é um poderoso opioide que promete acabar com a dor crônica e, graças a uma intensa campanha publicitária e de cooptação dos médicos, tornou-se uma das drogas mais populares nos EUA no fim dos anos 90, usada como se fosse uma simples aspirina não apenas para doenças graves, como o câncer, mas em praticamente qualquer situação que envolva o mínimo desconforto físico. Apesar de funcionar bem no início, o OxyContin é altamente viciante, pois tem propriedades e estrutura molecular muito próximas às da heroína.

A série demonstra que Sackler e sua família-empresa – que já lidava havia décadas com o mercado da dor – sabiam muito bem acerca desses efeitos e não só não se importaram com isso, como exploraram o OxyContin para criar um mercado literalmente cativo de clientes que pouco se diferenciam de viciados que fazem de tudo para conseguir a sua dose. O resultado é o que chamamos hoje de epidemia de opioides. Segundo dados do CDC (Center for Disease Control and Prevention) e da Nida (National Institute on Drug Abuse), entre 1999 e 2020, algo em torno de 841 mil estadunidenses morreram de overdose de opioides – comprados com receita ou não. Apenas no período de um ano (entre janeiro de 2022 e 2023) ocorreram 109,6 mil mortes, média de 300 por dia.

Já se sabe que o uso “recreativo” de opioides por adolescentes ultrapassa, em termos quantitativos, o uso combinado de cocaína, heroína e metanfetamina. As consequências dramáticas desse quadro são mostradas na minissérie por meio do trabalho da investigadora Edie Flowers, que vai juntando as peças do quebra-cabeças, e da rotina de Glen Kryger, um usuário legal de OxyContin, que, antes perfeitamente saudável e funcional, torna-se praticamente um morto-vivo.

Ainda que bem dirigida e produzida, a minissérie apenas sugere, sem aprofundar, um problema atual que, apesar de estar ligado à epidemia de opioides, é um fenômeno muito mais amplo, associado com a sacralização do médico, da medicina e, em última instância, da ciência. Na minissérie, percebe-se que o uso do “Oxy” só se popularizou com a velocidade e a intensidade que vemos porque a comunidade médica americana foi cooptada pelas farmacêuticas, que passaram a investir mais em propaganda do que em pesquisa, transformando a saúde em um verdadeiro e lucrativo negócio.

Nos nossos dias, a medicina tornou-se uma espécie de saber inquestionável, e o médico assumiu uma função quase sacerdotal.

No início do segundo episódio, uma das representantes da Purdue Pharma treina a sua “discípula”, dizendo-lhe que o sucesso das vendas depende de convencer os médicos a receitar OxyContin para seus pacientes, pois o médico – e não o padre ou o político – é o único em quem as pessoas confiam cegamente. De fato, nos nossos dias, a medicina tornou-se uma espécie de saber inquestionável, e o médico assumiu uma função quase sacerdotal. Muitos estudiosos leem esse fenômeno como um exemplo daquilo que o filósofo francês Michel Foucault chamou de biopolítica, ou seja, uma política que age diretamente sobre a vida, seja para protegê-la e fazê-la crescer, seja para negá-la, no caso de classes e raças “indesejadas”, com o que acaba se transformando em tanatopolítica.

Em um livro que escrevi com o filósofo catalão Francis García Collado, intitulado Para além da biopolítica (São Paulo: sobinfluencia, 2021), lançamos a hipótese de que o poder médico pode ser lido não simplesmente como biopolítica, e sim como aquilo que chamamos de bioarztquia, expressão que contém os termos gregos bios (vida) e arquia (poder) e, incrustada neste último, a palavra alemã arzt, que significa “médico”. O uso do alemão serve para lembrar a fala de Gerhard Wagner, médico-chefe dos nazistas que, durante o III Reich, prometera que o médico voltaria a ser o que foram os médicos do passado, ou seja, sacerdotes.

A bioarztquia, contudo, não é exclusiva do nazismo e se tornou prática comum em nossas sociedades, o que indica um duplo processo: a politização da medicina e a medicalização da política. É inevitável que a medicina seja política. O problema é que médicos, autoridades e a população em geral não reconhecem esse seu caráter e a tomem como um saber inquestionável e sagrado. Isso só é possível por meio de uma visão acrítica que trata a medicina e a ciência como campos neutros e objetivos que estão em uma espécie de competição com a ignorância e o embuste.

É essa, por exemplo, a orientação do livro Que bobagem!, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, que condena a psicanálise, a acupuntura e a homeopatia por não serem "científicas". Todavia, uma sociedade que se quer democrática não pode aceitar nenhum valor absoluto e deve estar disposta a discutir criticamente a sua medicina, que, sendo política, não é única, mas, sim, o resultado de uma opção política entre várias outras. Assim, há um amplo espectro de medicinas, que vão desde aquelas monstruosas de Wagner e Sackler, até outras bem diferentes, que pretendem, por exemplo, tratar não os efeitos, mas as causas de doenças psíquicas como a depressão em uma sociedade organizada com base na competição, no isolamento e no individualismo.

Outro exemplo positivo seria uma medicina capaz de entender o sentido social da dor, do mal-estar psíquico e da diferença em vez de se propor a mascarar indefinidamente seus efeitos. Em resumo, o que a epidemia de opioides nos ensina é que a medicina não é um campo neutro, médicos não são santos laicos, e a ideia de ciência precisa ser discutida e reconstruída não apenas por especialistas, mas pela sociedade que ela afeta.  

Andityas Soares de Moura Costa Matos | Professor de Filosofia do Direito e disciplinas afins na UFMG