Ensino

‘Processos criativos são tão importantes quanto os reflexivos’, diz Leda Martins sobre formação transversal na área cultural

Formação pretende estimular fruição de produções artísticas e culturais a exemplo do Tambor Mineiro
Formação pretende estimular fruição de produções artísticas e culturais a exemplo do Tambor Mineiro Foca Lisboa / UFMG

Alunos veteranos de graduação podem se matricular, a partir deste semestre, em uma nova formação transversal – Culturas em movimento e processos criativos, organizada pela Diretoria de Ação Cultural (DAC).

Ao todo, serão oferecidas cerca de 500 vagas em disciplinas das quatro opções desse tipo de percurso, que inclui Saberes tradicionais, Divulgação científica e Relações étnico-raciais, história da áfrica e cultura afro-brasileira. A matrícula deve ser feita de 30 de julho a 1º de agosto por meio do Sistema Acadêmico de Graduação (Siga). 

Informações sobre ementas e horários das disciplinas estão disponíveis na internet.

As formações transversais são trajetos formativos não-convencionais, compostos por conjuntos de disciplinas tematicamente articuladas que resultam em uma competência específica. O aluno pode cursar uma ou várias disciplinas avulsas, que resultam em créditos de formação livre, e receberá certificado específico caso integralize as 360 horas ofertadas no percurso.

A formação Culturas em movimento e processos criativos será composta de disciplinas – batizadas de “indisciplinas”, por apostarem em novos formatos metodológicos –, seminários e duas inovações: o Passaporte cultural, no qual o aluno é convidado à fruição de produções artísticas e culturais que renderão créditos acadêmicos, e os Laboratórios transversais, atividade que pressupõe inserção do estudante na rotina de laboratórios, grupos de pesquisa e projetos extensionistas da Universidade.

“O processo criativo é simultaneamente o fazer e a reflexão sobre o criar. Foi nesse sentido que aceitamos o desafio da Pró-reitoria de Graduação para pensar um projeto específico na área de cultura”, explica Leda Martins, diretora de Ação Cultural da UFMG e presidente do comitê didático-pedagógico desta formação.

A intenção, segundo ela, é “reconfigurar o lugar da cultura na formação do aluno”. Em sua opinião, não basta inovar no assunto, mas também no modo de tratar os temas, por isso, a proposta inclui atividades que fogem ao formato regular das disciplinas acadêmicas.

Membro do mesmo comitê, o professor Fernando Mencarelli pondera que mudanças no ensino superior e na relação com o mercado de trabalho foram pautando cada vez a formação que enfatiza a “visão dos especialistas”, em detrimento da “ampla visão formativa do cidadão”.

Outra integrante do comitê, a professora Denise Pedron observa que “vivenciar a cultura e as artes aumenta no estudante a capacidade de agir no mundo, independentemente da área em que escolheu atuar.”

Na entrevista a seguir, Leda Martins, Fernando Mencarelli e Denise Pedron abordam a nova formação.

Qual o papel da formação transversal Culturas em movimento e processos criativos na política cultural da UFMG?

Leda Martins
Leda Martins Foca Lisboa / UFMG


Leda Martins – Assumimos a Diretoria de Ação Cultural (DAC) em 2014, com o desafio de trabalhar para que a cultura se tornasse de fato parte do projeto acadêmico e formativo da UFMG. Tem sido parte do nosso projeto reconfigurar esse lugar da cultura na formação do aluno, pensando-a como direito inalienável do cidadão e na sua importância na formação de todo e qualquer aluno, de qualquer área.

Assim, Culturas em movimento e processos criativos vem nesse âmbito de pensamento, de que os processos criativos são tão importantes quanto os outros processos de reflexão. Eles são, simultaneamente, o fazer, e a reflexão sobre o criar. Foi nesse sentido que aceitamos o desafio da Prograd para pensar um projeto específico na área de cultura.

Mas sabemos que não basta inovar no assunto, mas no modo de tratar os temas, por isso, esse projeto propõe uma série de atividades que fogem do âmbito regular de um currículo: as disciplinas, que chamamos de “indisciplinas” porque são transversais, apostam em novos formatos e na incorporação de atividades ofertadas pelas outras formações.

Serão conferidos créditos acadêmicos que sinalizam ao aluno que ele deve circular por várias áreas de conhecimento, investindo cada vez mais nessa ideia das transversalidades. A expansão do que é a atividade acadêmica é importante como característica dessa proposta.

Trazemos também uma grande inovação em termos metodológicos: o Passaporte cultural, em que o aluno é creditado por assistir a atividades artísticas de qualquer linguagem, e a participação em atividades laboratoriais, o que inclui grupos de pesquisa, mesmo em uma área diferente da sua.

Fernando Mencarelli
Fernando Mencarelli Foca Lisboa / UFMG


Fernando Mencarelli – esse projeto das formações transversais traz uma visão muito importante para ser desenvolvida na Universidade, que diz respeito a sua vocação para o acolhimento de diferentes perspectivas, formas e linhas de conhecimento. E a DAC responde a esse convite ao formular um projeto de dimensão transdisciplinar que traz a especificidade e a singularidade do conhecimento na área de artes, fundamentais para somar, na formação de todos os graduandos da UFMG.

Leda Martins – há outra dimensão fundamental dessa formação. Como diz Berenice Menegali, uma das criadoras do Festival de Inverno, uma das maiores contribuições dos festivais são os bens que trazem para as universidades que os realizam. No caso da UFMG, duas formações transversais – Saberes tradicionais e Culturas em movimento e processos criativos – também são bens oriundos do Festival de Inverno, que se desdobram da história desse belíssimo evento. Bens que não são medidos em termos monetários e que se revelam em toda essa relação artística e cultural, que o Festival de Inverno tem desenvolvido há 50 anos, de forma transversal, transdisciplinar, apostando na experimentação, na inovação, na ideia de que as culturas são produção de conhecimento. Essas formações vêm de um processo que se desdobra e se integra como parte constitutiva da Universidade.

Fernando Mencarelli – o grande passo é transformar tudo isso em atividades acadêmicas regulares, não apenas extensionistas.

De que modo esse percurso pode impactar a formação dos alunos de graduação?

Denise Pedron
Denise Pedron Foca Lisboa / UFMG


Denise Pedron – é importante lembrar que a pessoa tem mais capacidade de refletir sobre o mundo e de produzir ações para efetivamente modificá-lo quando está em contato com a cultura e com as artes. Assim, vivenciar os processos criativos e entender a cultura em toda a sua diversidade, aumenta a capacidade desses alunos de agir no mundo, independentemente da área em que escolheram atuar.

Fernando Mencarelli – mudanças no ensino superior e na relação com o mercado de trabalho foram pautando cada vez a formação que enfatiza a “visão dos especialistas”, em detrimento da “ampla visão formativa do cidadão”. A proposta Culturas em movimento e processos criativos aponta no sentido do que a UFMG quer imprimir aos seus alunos egressos, isto é, que sejam profissionais capazes de se pensar como cidadãos, que tenham sensibilidade e escuta para tratar dos desafios que a sua escolha profissional vai demandar.

Leda Martins – essa dimensão nos chama a atenção para algo que não é muito consciente nas pessoas: muita gente pensa cultura como algo separado de si mesmo, porque só identifica cultura como um evento aqui, outro ali. Mas cultura atravessa o sujeito, constituindo sua visão de mundo. E é atravessada pela experiência ampla e diversa de cada um dos sujeitos. Assim, em tudo o que fazemos, estamos exercitando a nossa visão de mundo, a nossa constituição cultural.

Não há uma escolha que façamos que não seja matizada por aquilo que nos constitui culturalmente. Esse curso vem restaurar, de certa maneira, essa dimensão humana, ampla que existe em cada profissional, que matiza toda a sua atuação no mundo e que nem sempre é consciente.

Ao desenhar essa proposta, vocês imaginaram um público de cursos específicos? Ou acreditam que essa formação vai interessar a estudantes de todas as áreas?

Leda Martins – abrimos um fórum de cultura em 2014 e percorremos a Universidade em audiências públicas. E um dos maiores desafios que ouvimos, particularmente em áreas como Medicina, Engenharia e Direito, foi o desejo, de alunos desses cursos, de terem oportunidade de incluir, na sua formação curricular, algo que fosse da ordem humanista, cultural, artística. Não tenho dúvida de que a proposta atrairá alunos de várias áreas do conhecimento.

Fernando Mencarelli – na UFMG há projetos culturais longevos, como os de cineclubismo, pois a Universidade sempre se moveu nessa direção, por iniciativa de estudantes ou de professores. A oportunidade que temos é de transformar isso num projeto contínuo, regular, legitimado pela Instituição, como complemento da formação.

A proposta Passaporte cultural, em que os alunos são convidados à fruição de produções culturais, é inovadora...

Fernando Mencarelli – o projeto Passaporte convida os estudantes para que frequentem atividades artísticas e culturais indicadas pela formação transversal, por meio de ampla rede de parceiros, instituições e agentes culturais também fora da UFMG. A intenção é que o estudante tenha creditada a sua fruição como consumidor de cultura, como parte de sua formação, entendendo que assistir a uma exposição de alta qualidade, a uma manifestação cultural, ao exercitar interação com um conteúdo sob a forma artística ele também está adquirindo conhecimento.

Denise Pedron – é muito importante essa ideia de uma fruição cultural livre, um contato com uma produção artística em que o aluno não tenha necessariamente que fazer relatório e não será avaliado com uma análise crítica. Essa ideia da vivência da cultura como uma atividade formativa é muito importante e muito bem-vinda, pois amplia a capacidade de atuação do indivíduo, não só na área profissional, como também na vida.

Além disso, com os seminários, estamos incentivando a transdisciplinaridade, tão desafiadora e ainda difícil de ser praticada. Não propomos simplesmente que o estudante assista a um seminário da sua área específica de conhecimento, mas que transite e dialogue em outras áreas.

Leda Martins – no primeiro dia de aula, o aluno vai receber um instrumento físico, no formato de passaporte. No âmbito dessa formação, ele poderá fazer de 45 a 90 horas. Cada atividade de que participar equivale a uma hora e meia, e a cada dez atividades, ele terá 15 horas, equivalentes a um crédito. Podem ser atividades artístico-culturais as mais diversas no âmbito da UFMG e fora dela, pois estamos estabelecendo parceria com uma gama extensa de agentes culturais. O estudante anexa o tíquete ao passaporte ou recebe um carimbo específico.

Estamos considerando não apenas as atividades com as quais todos já estão familiarizados, mas também apostando na diversidade, como festas de reinado de irmandades do rosário, mostras hip-hop, apresentações da Velha Guarda do Samba, manifestações urbanas das periferias em várias áreas artísticas, que em geral não são consideradas atividades acadêmicas.

Estamos constituindo essa rede, para que o aluno possa ser exposto a uma diversidade cultural que amplie o seu prisma do que seja atividade cultural e não olhe apenas para as mais hegemônicas. As culturas são muito diversas, com processos de criação, visões de mundo e filosofias muito diversificados.

O que são os Laboratórios transversais?

Fernando Mencarelli – mapeamos laboratórios, grupos de pesquisa e projetos extensionistas que atuam na área da cultura e das artes na UFMG, para que os alunos se incorporem às atividades já realizadas na rotina desses grupos e se formem na dinâmica própria de cada núcleo. Estabelecemos a primeira oferta neste piloto do curso, que será ampliada, em diálogo com a comunidade acadêmica. Apostamos nessa ideia, que é uma diretriz da UFMG há muito tempo: que a oferta de formação seja constituída não apenas da disciplina no formato tradicional, mas tenha uma diversidade de atividades.