Arte e Cultura

Jacyntho Lins Brandão reúne produção poética mais recente em novo livro

Ao investigar o que resta da dissolução a que tudo está destinado, helenista da UFMG encontra mais uma vez a poesia como a derradeira resposta

'Harsíese', novo livro de poemas de Jacyntho Lins Brandão
'Harsíese', novo livro de poemas de JacynthoImagem: Reprodução de capa

O escritor e professor emérito da Faculdade de Letras Jacyntho Lins Brandão decidiu reunir seus poemas mais recentes em novo livro, superando o que parecia ser certa tradição de espaçar entre as décadas os seus lançamentos literários.

Em 2020, pela editora Quixote+Do, Jacyntho, um dos principais helenistas do país, já havia lançado Mais (um) nada, livro em que, na opinião da poeta Ana Martins Marques, ele faz uma “contabilidade de perdas, vazios e ausências”. Agora, pela Editora Patuá, o poeta lança Harsíese, obra que organiza mais de 40 poemas em quatro seções.

O lançamento será neste sábado, 15 de abril, às 11h, na Livraria Quixote, que fica na Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, em Belo Horizonte. Jacyntho autografará os volumes até as 14h.

O passado em chamas
Harsíese foi um proeminente egípcio dos anos 650 de antes da Era Comum. Seu nome apareceu nos jornais quando a sua múmia, depositada no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi devorada pelo incêndio de setembro de 2018.

Coletada em Tebas, no Egito, a múmia desse “alto funcionário” – provável sacerdote do Templo do deus Amon em Karnak, atual Luxor, cidade da margem oriental do rio Nilo, no sul do país – era uma das mais importantes sob a guarda do museu. Ela dá nome ao livro e a um dos poemas de sua primeira parte, Brancor.

Harsíese, de fato, é um livro sobre a (e para dar vazão à) memória. “Tenho o alforje da memória entulhado de versos”, escreve Jacyntho em Nada dizer. Nessa perspectiva, contudo, seus poemas não apenas revelam a passagem do tempo no âmbito das vidas pessoais, mas também desenham o avançar da modernidade tardia brasileira.

É o que ocorre, por exemplo, em Casa das Lodi, um poema “bandeirianamente nostálgico, por isso longo e em versos longos”, como certa vez anotou o autor. Nele, Jacyntho escreve: “O quintal da casa das Lodi já foi estacionamento / pronto está a receber arranha-céu envidraçado / defronte resta a carcaça que o portão separa da rua / solução de arquitetos que o futuro do passado / se dizem expertos manter nestes presentes tão duros.”

Múmia de Harsíese fora do sarcófago, em exposição no Museu Nacional, antes de ele ser consumido pelo incêndio
Múmia de Harsíese fora do sarcófago, em exposição no Museu Nacional, antes do incêndio Foto: Arquivo UFRJ

Filosofia, poesia, metalinguagem
O livro, porém, poderia se chamar Dialética disléxica, tendo em vista o poema mais longo, com esse título, que figura na metade do volume e compõe toda a segunda parte da obra. Estruturado em dípticos, o poema pode ser lido como um centro rizomático (ele tem uma temática vegetal) e espécie de ponto de convergência para os demais poemas do livro.

Ali, ao compor uma espécie de biografia arbórea (“Nasci de um galho seco e desfeito / Em verde ainda e já podado”) de um eu-lírico que é, ao mesmo tempo, também demasiadamente humano (“Fiz esta descoberta: homo sum”), Jacyntho acaba tratando do descompasso insuperável que há entre as coisas e as palavras que tentam nomeá-las.

Sarcófago de Harsíese, no Museu Nacional, em que se representa uma múmia envolta em seu sudário
Sarcófago de Harsíese, no Museu Nacional, em que se representa uma múmia envolta em seu sudário Foto: Arquivo UFRJ

Com efeito, esse mote vai aparecer, de maneiras distintas, em diferentes poemas do volume, o que justifica a anotação, na orelha do livro, de que a “sobreposição dos significantes aos significados para a construção de sentidos multivalentes” é um dos principais recursos da técnica poética do autor.

Ainda sobre Dialética disléxica: com seus versos, Jacyntho lembra que, se ora as palavras são insuficientes para tantas coisas e ora existem palavras demais para tratar de uma coisa só, o que resta é a incontornável regra de que nunca se faz possível a identidade precisa entre alguma coisa e uma palavra que lhe corresponda perfeitamente, daí o “mistério da fé” da linguagem, em seu engano primordial.

Em certo trecho, escreve o poeta, dando a ver o paradoxo que se encena desse dado material da realidade linguística humana: “Se houvesse o mesmo número / De palavras e coisas / Não haveria tantos poemas. / Bastava um só. E pronto. / Ele dizia tudo. E pronto. / Bastava um só. Tão pronto / Que te diria tudo em verso mudo.”

Esse mote metalinguístico (a poesia que diz da poesia, a linguagem que diz da linguagem etc.) é uma constante que atravessa o livro, surgindo pela primeira vez já em seu primeiro poema, o soneto sem estrofes Ao traço que corrompe. Trata-se de um poema sobre o ato de escrever (e desescrever) na tela branca do “comput a dor”, no qual Jacyntho, radicalizando a contradição, quebra sílabas arbitrariamente e subtrai modernamente algumas letras de palavras, mas apenas para, com isso, limitar seus versos à nobreza clássica dos decassílabos.

Mais tarde, o poeta voltará à forma do soneto em Patrialíngua, poema de inclinação decolonial que trata da relação ambígua do eu-lírico com o idioma nacional: “Língua materna, nada! língua puta, / Impura, inculta, apátrida: tão bela.”

Crítica, sarcasmo, humor
Outros destaques da primeira parte da obra são os poemas Ode ao fumo, em que Jacyntho relembra, saudoso, os seus supostos tempos de fumante, e Entre Jerusalém e Berlim, em que o poeta faz uma crítica gaiteira à afetação elitista das minibiografias literárias que figuram nas orelhas de nossos livros.

Esses dois poemas estão entre os que o autor antecipou em suas redes sociais nos últimos anos pandêmicos. Em uma dessas ocasiões, assim ele justificou essas publicações, valendo-se da sua típica falta de afetação: “Tomei o gosto de compartilhar poemas aqui, porque sempre há quem leia”, disse, objetivo.

'Epopeia da criação: Enūma Eliš' (Autêntica, 2022) é a mais recente tradução publicada pelo autor
'Epopeia da criação: Enūma Eliš' (Autêntica, 2022) é a mais recente tradução publicada pelo autor Imagem: Reprodução de capa

Na época dessa primeira publicação de Ode ao fumo, outubro de 2021, a professora emérita da Faculdade de Letras Eneida Maria de Souza (morta em março do ano passado) comentou: “Que belo e inteligente poema. Eu escrevi minhas teses à base de baforadas do Carlton, a janela fechada por causa do inverno em Paris. Aleluia!” No livro ora publicado, o comentário da colega de academia foi incorporado ao poema como dedicatória in memoriam.

Em Entre Jerusalém e Berlim, por sua vez, o poeta trata de um daqueles tantos casos em que uma característica ou experiência burguesa de um escritor, como a sua vivência internacional (de resto, aspecto biográfico possível apenas à mínima parcela mais abastada da população mundial), é apresentada como se fosse um dado atribuidor de valor a priori para a sua literatura.

Jacyntho escreveu esse poema “em contradom” ao texto da minibiografia da escritora palestina Adania Shibli no livro Detalhe menor, publicado no Brasil em 2021 pela Editora Todavia. Nele, afirma-se que a autora vive “entre Jerusalém e Berlim”. Jacyntho: “Convenhamos: são dois espaços mágicos / em seu viver que sempre quanto trágico / de nazistas e o mau destino de judeus / de judeus que desterram palestinos”.

A esses monumentos topográficos, Jacyntho vai contrapondo destinos cada vez mais modestos em seu poema, isto é: destinos desprovidos da pompa discursiva da “Grande História Mundial”, como Betim e Furquim, cidades de Minas Gerais; destinos desprovidos do valor agregado da circulação mundial burguesa, como Vitória, capital do Espírito Santo.

Mas Jacyntho não faz de seu poema uma crítica per se nem à noção de “República Mundial das Letras” nem ao livro de Adania Shibli, que ele, inclusive, chamou de “belo”, quando publicou seu poema pela primeira vez na internet; antes, apenas busca chamar a atenção para as nuanças que despontam da idiossincrática construção biográfica.

O professor Jacyntho Lins Brandão, organizador do livro Literatura Mineira: Trezentos Anos.
Jacyntho Lins Brandão, professor emérito da Faculdade de Letras Foto: Foca Lisboa | UFMG

Com seu humor característico, o professor da Faculdade de Letras brinca com o fato de que, dado o seu “entre”, a autora talvez viva, então, não em uma cidade ou outra, mas em algum lugar situado no meio de sua rota: Bucareste, Budapeste, Bratislava, Praga; quem sabe, em algum recanto escondido bem no meio do mar Egeu.

Em suma, mais do que expressar qualquer coisa especificamente sobre a autora, Jacyntho talvez diga, com seu poema, do que seja o nosso mercado editorial, instância vocacionada a reproduzir, nos paratextos e nas cadeias de produção e divulgação de seus livros, os mesmos valores burgueses contra os quais os discursos de seus livros não raro se insurgem. Nesse sentido, o livro joga luz, ainda que de forma oblíqua, sobre um imorredouro calcanhar de Aquiles da engrenagem cultural brasileira: a sua vocação para a manutenção da elitização e das elites.

A terceira seção de Harsíase, Ouro Preto: Raízes, é inteiramente dedicada à histórica cidade mineira; titulados com anos diversos, sobretudo do século 18, mas também dos tempos atuais, seus poemas (a rigor, formam todos um único poema) remontam os temas clássicos da história ouropretana: a escravidão, o ouro, a conjuração inconfidente, a devassa, a religião. A última seção, denominada Errâncias, traz poemas tematizados em grandes destinos da antiguidade histórica do mundo (assunto em que o poeta, como pesquisador, é especialista), articulados a anos e estações do ano: Delfos, Ávila, Cusco, Micenas, mas também Copacabana e Belo Horizonte.

O remate do livro ocorre com um poema sobre Ítaca, publicado originalmente nas redes sociais do autor em março de 2021, no auge da pandemia de covid-19. À época, Jacyntho comentou: “Escrever sobre Ítaca é um desejo que sei que muita gente tem. Eu também. Porque escrever sobre Ítaca é refletir sobre a possibilidade dos retornos. Pode ser que eu esteja mergulhado na sensação de impossibilidades no meio da nossa tragédia atual, sobretudo a perda de tanta gente no caminho. Quando isso tudo passar (pois tudo passa), haverá retorno? Por isso, compartilho com vocês este (meu) poema, como homenagem a nossos quase 300 mil mortos.”

Houve retorno, como sabemos, ainda que, dois anos depois, o número de mortos tenha mais do que dobrado. Dissolução e a sua subsequente continuidade: é disso, em suma, que trata Harsíese.

Perfil
Jacyntho Lins Brandão é professor emérito da Faculdade de Letras da UFMG, da qual foi diretor em dois mandatos (1990-1994 e 2006-2010), além de ter sido vice-reitor da UFMG (gestão 1994-1998).

É autor de inúmeros ensaios e traduções; a mais recente delas foi a do poema babilônico Epopeia da criação, também conhecido como Enūma Eliš. O livro foi publicado no ano passado pela Editora Autêntica.

Atual secretário-geral da Academia Mineira de Letras, Jacyntho assume, nesta segunda-feira, a presidência da entidade, da qual é membro desde 2018.

Livro: Harsíese
Autor: Jacyntho Lins Brandão
Editora Patuá
98 páginas / R$ 45 

Ewerton Martins Ribeiro