Indígena mestre pela UFMG propõe reflexão sobre a relação da aldeia com a fotografia

Edgar Nunes Correa, o Edgar Kanaycõ, é o primeiro indígena mestre em Antropologia pela UFMG. A dissertação Etnovisão: o olhar indígena que atravessa a lente foi defendida no segundo semestre de 2019, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich). O pesquisador também é um dos artistas com trabalhos na exposição Mundos Indígenas, em cartaz no Espaço do Conhecimento UFMG.

Edgar Kanaycõ assim define sua relação com a fotografia, protagonista de sua dissertação de mestrado: “sou Edgar Kanaycõ, do povo Xakriabá. Moro na terra indígena Xakriabá, no município de São João das Missões, no Norte de Minas. Meu interesse pela fotografia e audiovisual surgiu do próprio interesse da comunidade, quando, nos anos 2000, viu chegar a energia elétrica e, com ela, equipamentos como televisão, rádio e a câmera fotográfica. Desde então, a fotografia, que inicialmente foi vista como um perigo – pela desconhecida influência que poderia exercer sobre nossa cultura –, passou, aos poucos, a ser conhecida e percebida também como instrumento de luta e resistência”.

O pesquisador, que faz questão de retomar a conversa se apresentando com sobrenome indígena e identificando seu povo, explica que uma característica do ser indígena é essa relação de respeito e pertencimento à sua comunidade, que se reflete também na relação do povo Xakriabá com a fotografia. Na dissertação,  as fotografias de Edgar Kanaycõ são o principal instrumento narrativo, superando o texto escrito, “essa forma de grudar o idioma no papel”, como ele define a escrita. 

Sagrado e segredo

Na língua akwẽ (originalmente os Xakriabá eram chamados de Akwẽ Ktabi), a palavra hêmba significa espírito, alma e também pode significar imagem, fotografia. “Para nós, e isso não é diferente para muitos povos indígenas, a fotografia também revela o que os olhos não podem ver. Proponho uma reflexão sobre como fazer etnografia com imagem, ou etnofotografia, principalmente sob o ponto de vista indígena, que é diferente do não indígena, porque, para nós, essa relação da fotografia também com o mundo espiritual pode trazer perigos ao envolver o sagrado, que, muitas vezes, é segredo”, teoriza.

Edgar Kanaycõ, que cursou Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei), na Faculdade de Educação (FaE) da UFMG, conta que, durante um ritual ou festas indígenas, quem decide sobre o que pode ou não ser registrado não é quem está com uma câmera nas mãos, mas os espíritos, mediados pelos pajés, que também negociam com a comunidade. 

Essa preocupação com o permitido e o não permitido, que define as questões de ética e uso da imagem desde a captura, perpassou toda a pesquisa do indígena, que manteve diálogo intenso com seu povo, segundo seu orientador, o professor Ruben Caixeta de Queiroz, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich.

“Edgar também sempre se preocupou com o modo como o seu trabalho seria lido pelo seu povo, cuidado que reflete o compromisso que eles tanto prezam com suas comunidades ao ingressarem na academia”, observa o professor.   

Desde seu primeiro contato com a fotografia, Edgar Kanaycõ quis descobrir como dizer alguma coisa por meio das imagens. “Quando entrei na UFMG, em 2009, para fazer a licenciatura em ciências sociais e humanidades, pensei em desenvolver esse tema. E no mestrado tive apoio da Associação Indígena Xakriabá para desenvolver uma reflexão sobre esse importante instrumento tecnológico. Os mais velhos perceberam que a fotografia também poderia ser instrumento de luta e resistência e que alguma coisa poderia ser revelada, especialmente aos mais jovens, nas escolas indígenas”, relata. 

Segundo Ruben Caixeta, o trabalho de Edgar traz novas perspectivas para o que se denomina antropologia indígena, ou antropologia colaborativa, porque, apesar de as imagens sempre terem sido utilizadas pelas ciências para ilustrar e ajudar a descrever uma realidade, nessa pesquisa, elas foram produzidas por um nativo sobre si mesmo e sua cultura.

“O nativo, objeto das pesquisas antropológicas e que sempre colaborou como guia, tradutor ou assistente de campo dos pesquisadores, passa a ocupar o lugar de sujeito na produção do conhecimento sobre si mesmo. Trata-se de uma troca, em que a universidade ganha ao se abrir para a pluralidade e a universalidade de novos saberes, ao mesmo tempo que contribui com a formação de profissionais que retornam às suas comunidades”, acrescenta o professor.  

Essa “antropologia reversa”, como Edgar Kanaycõ define seu trabalho, traz a expectativa de “uma influência histórica sobre essa narrativa, sempre contada por não indígenas e ilustrada, muitas vezes, por estereótipos como índios nus, morando na Floresta Amazônica e usando arco e flecha”, observa. 

Em sua opinião, “nesse cenário, onde o governo deslegitima as lutas indígenas, é preciso mais do que ocupar os espaços majoritariamente ocupados por não indígenas, como a academia, é preciso desconstruir e reconstruir esses espaços com um pouco da nossa cara. E, quando voltarmos para nossas comunidades, seremos mediadores de tantas questões, sempre com um pé no mundo e outro na aldeia. Sempre conectados uns com os outros”, afirma Edgar.

Mundos indígenas

Na exposição Mundos Indígenas, explica Edgar Kanaycõ, a intenção dos curadores, todos indígenas, é proporcionar ao visitante “os cheiros de seus territórios, desde a terra e seu cultivo até a diversidade da vegetação e da cultura”. As fotografias de Edgar retratam o território Xakriabá, formado por 56 mil hectares demarcados, 32 aldeias e com população de 10 mil pessoas, jovens em sua maioria. Na exposição, também estão representados os povos Maxakali, Pataxoop, Yanomami e Ye’kwana.

Confira vídeo da TV UFMG sobre a exposição Mundos Indígenas

Dissertação: Etnovisão: o olhar indígena que atravessa a lente

Programa: Pós-graduação em Antropologia

Autor: Edgar Nunes Correa (Edgar Kanaycõ)

Orientador: Ruben Caixeta de Queiroz

Defesa: agosto de 2019

(Com informações de Teresa Sanches para o Boletim UFMG 2.086).

Assessoria de Imprensa UFMG

Fonte

Assessoria de Imprensa UFMG