Pesquisa da UFMG aborda experiência do povo Xakriabá no enfrentamento da covid-19

Trabalho de aluna indígena conclui existir sentimento de impotência e mesmo certa descrença entre população

Uma pesquisa da Escola de Enfermagem UFMG apresentou as experiências vivenciadas no processo de reorganização comunitária do povo da terra indígena Xakriabá para concretizar as ações de enfrentamento da covid-19. O assunto foi tema do trabalho de conclusão de curso de Simone Nunes Corrêa, estudante indígena Xakriabá, que concluiu haver um crescente sentimento de impotência diante da proporção que a pandemia vem tomando dentro do território localizado no município de São João das Missões, na região norte de Minas Gerais.

No trabalho, que teve orientação da professora Lívia de Souza Pancrácio de Errico, a estudante ainda relatou que, apesar do esforço da organização interna junto ao serviço de saúde em propor medidas de enfrentamento, permanecem presentes fragilidades, uma vez que os casos têm aumentado cada vez mais entre a população.

“Não sabemos ao certo como e quando tudo voltará à normalidade, como sairemos dessa pandemia e se de fato sobreviveremos. O medo de quais serão os impactos que esse vírus trará para as nossas comunidades indígenas é algo que nos preocupa muito. O início do processo de vacinação está trazendo esperança e ânimo para a população, porém, a pandemia deixará marcas significantes pelas perdas humanas ocorridas”, afirma Simone Corrêa.

Simone, que será a primeira mulher indígena Xakriabá a se formar em Enfermagem, lembra que os primeiros casos de covid-19 no Brasil causaram preocupações, mudando drasticamente os planos de todos, inclusive dos estudantes indígenas espalhados pelo Brasil. Eles tiveram que retornar o mais rápido possível para suas aldeias de origem, trazendo incertezas e inquietações relacionadas à continuidade do percurso acadêmico e futuro retorno profissional para a comunidade.

A estudante destaca que, com as primeiras notícias sobre o vírus, as pessoas da comunidade, principalmente as mais idosas, afirmavam que a covid-19 ainda era algo distante, impossível de atingi-los. Frases como “isso é doença de cidade grande”, “nós estamos protegidos”, “a China é muito longe” e “já escapamos de coisas piores” eram comuns, conforme explica Simone.

“Nas conversas com tias e tios mais velhos da aldeia ouvíamos os relatos das pragas do passado, uma referência à meningite e ao mal-de-sete-dias (tétano neonatal), que mataram muitas crianças em meados dos anos 80. No caso da meningite, que teve um pico elevado em meados de 1990 no território Xakriabá, poucos infectados sobreviveram, segundo os relatos, uma vez que poucos tinham acesso ao serviço de saúde, para que pudessem se submeter ao tratamento adequado. Foi uma época difícil, onde habitava o medo e a incerteza de que tudo pudesse voltar à normalidade”, lamenta.

De acordo com o Boletim Informativo, até 10 de março de 2021, eram 860 casos de covid-19 notificados, 655 testes realizados e 146 casos positivos, com o registro de um óbito na população Xakriabá, que tem cerca de 11 mil indígenas. “Desde o início da pandemia no território nacional, em 2020, a população indígena Xakriabá teve dificuldade para organizar as suas ações de enfrentamento, sejam elas na área da prevenção do espalhamento e ou do monitoramento dos casos da doença. As estratégias envolveram várias alterações e adaptações nos modos de vida Xakriabá, dentre elas o ajustamento do calendário festivo e a acomodação de alguns dos costumes tradicionais. Em grande parte, as medidas adotadas foram subsidiadas pelas recomendações de prevenção”, explica.

Principais ações realizadas

Uma das primeiras ações para proteger o povo Xakriabá do vírus foi o controle de entrada de pessoas vindas de fora das aldeias por meio de um rastreamento realizado no município de São João das Missões, onde quem chegava de viagem era orientado a passar por uma identificação e a cumprir a quarentena antes de entrar nas aldeias de origem. “Neste momento eram aferidos os dados vitais e realizada uma breve anamnese, a fim de investigar os possíveis contactantes, evitando a entrada de sintomáticos respiratórios dentro do território, bem como dispor de orientações sobre os cuidados de prevenção contra a covid-19 e a importância de cumprir a quarentena antes de ter contato com seus familiares”.

Foram instaladas barreiras sanitárias nas principais entradas de acesso ao território, que passaram a funcionar entre os meses de abril e setembro de 2020 com preenchimento de questionários com dados pessoais e informações relevantes para o monitoramento, aferição de temperatura, controle de portão de entrada, organização das refeições para os integrantes das barreiras, verificação de uso de máscaras e orientações sobre os cuidados necessários para contenção da doença. 

“As barreiras de monitoramento tiveram impactos positivos e negativos por parte da população. Principalmente no início, muitos se mostraram resistentes a responder os questionários, utilizar máscaras e até mesmo em acatar as orientações relacionadas às medidas de prevenção contra a covid-19. Entre os relatos mais ouvidos nas barreiras sanitárias, estavam relacionados a descrença por parte das pessoas com relação a possibilidade de disseminação do vírus no território Xakriabá. Por outro lado, o monitoramento trouxe boas reflexões para outra parcela da população, que relatou se sentir mais seguras após instalação das barreiras, para outros ainda, as barreiras deveriam ser um método adotado para o controle do fluxo diário no nosso território, independente da pandemia de covid-19”, conta a estudante.

Além desse monitoramento, outras estratégias de enfrentamento e ações preventivas para evitar a propagação do vírus nas aldeias foram realizadas, como reativação da rádio comunitária Xakriabá, boletins informativos e mobilização das equipes de saúde no território e divulgação do boletim eletrônico para acompanhamento dos casos de covid-19 na população Xakriabá.

Desafios

Nas ações cotidianas do Comitê de Enfrentamento, de acordo com a futura enfermeira, percebem-se diversos desafios com relação à adesão da população Xakriabá às medidas de confinamento, distanciamento social, entre outras restrições.

Simone detalha a falta de compreensão, por parte de alguns, de que a não adesão às orientações estabelecidas pelos protocolos de saúde e pelos órgãos competentes poderia significar o risco de espalhamento em massa da covid-19 entre o povo. Diversas reflexões foram feitas acerca do momento da pandemia: as motivações, resistência em seguir as recomendações de prevenção, o reconhecimento dos efeitos, medo e receio de manter as atividades cotidianas em função da autoproteção dos familiares.

De acordo com a pesquisadora, além das implicações relacionadas à atenção primária à saúde da população Xakriabá existe outro desafio por parte dos atendimentos de média e alta complexidade, levando em consideração o acesso aos hospitais de referência em casos mais complexos não só relacionados aos possíveis agravamentos pela covid-19, mas também relacionados a outras patologias em que esses atendimentos se fazem necessários. “Um dos desafios mais recentes que vem deixando a população e profissionais de saúde preocupados é o fato das superlotações dos leitos de UTIs dos hospitais de Montes Claros, que possui atualmente ocupação de 80% de sua capacidade, e hospital de Janaúba, possuindo ocupação de 93%, ambos referência ao atendimento da população Xakriabá”.

Simone enfatiza que as reflexões apontam para a relação dialógica entre o conhecimento tradicional e científico. “Algo imprevisto, mas positivo neste complicado cenário onde o adoecimento causado por um vírus deixa cicatrizes nos pulmões do mundo. O contexto pandêmico nos deixa uma alerta: um chamado para a humanidade despertar e enxergar outros modos de viver e, consequentemente, de produzir a ciência”, conclui.

Assessoria de Imprensa UFMG

Fonte

Assessoria de Comunicação da Escola de Enfermagem da UFMG

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