Pesquisa da UFMG relaciona ‘black music’ à expressão do antirracismo no Brasil

Em tese da História, Bruno Morais analisou as manifestações do movimento – que abarcou estilos como soul, funk e disco – que afirmava a cultura negra e denunciava o preconceito

Analisar parte da história da black music no Brasil é também perceber a evolução do entendimento de racismo e antirracismo e a articulação das comunidades negras brasileiras com as dos Estados Unidos. Esse é um dos aspectos que sobressaem na tese de Bruno Vinícius Leite de Morais, defendida em 2022, no Programa de Pós-graduação em História da UFMG. A investigação de Bruno percorreu três décadas (de 1960 a 1988) e encontrou a bossa negra a partir de Elza Soares, o soul, o funk, a disco music e outros gêneros.

Após recuperar algo do diálogo da música do Brasil com a dos Estados Unidos nas duas primeiras décadas do século passado – ele identificou expressões do antirracismo em Pixinguinha e outros nomes da música popular brasileira –, Bruno partiu, para sua análise, do disco Bossa negra, de Elza. Essa gravação de 1960 tinha hibridações do samba, sobretudo o de gafieira, com sonoridades jazzísticas da black music norte-americana. Jorge Ben Jor e Wilson Simonal foram outros expoentes do gênero nesse período.

A gravação, por Simonal, do spiritual Tributo a Martin Luther King, na segunda metade da década de 60, marcou apropriação mais explícita das sonoridades muito presentes nos EUA. “A black music simbolizou intensa modificação da abordagem da temática racial, em diálogo profundo com os Estados Unidos, na musicalidade e também na forma de pensar sobre sofrer racismo”, afirma o pesquisador. Ele explica que o entendimento do termo racismo era, à época, relacionado à afirmação racial de grupos diversos, não era entendido como preconceito dos brancos contra os negros. Na ditadura, a polícia política chegou a tratar a black music como racista, nesse sentido.

Ainda nos anos 1960, a pesquisa localizou evidências da incorporação, no Brasil, das sonoridades da música jovem (ou pop, como era referida), representadas pelo soul e o funk. E já se encontravam ali, afirma Bruno, elementos de uma nova forma de expressão do antirracismo na canção brasileira, denominada na tese de Linguagem Política do Orgulho Negro.

Linguagem antirracista
O ápice da produção da black music brasileira se deu nos anos 1970. Nesse período, a pesquisa de Bruno Morais constatou expressivo número de canções com temáticas da linguagem negra antirracista e da Linguagem Política do Orgulho Negro – alguns exemplos são Negro é lindo, de Jorge Ben Jor, Sou negro, de Toni Tornado, e Refavela, de Gilbeto Gil. “Apesar da censura imposta pela ditadura militar, muitas canções contradiziam a representação oficial das relações raciais no país, e a música difundia com força a linguagem antirracista”, afirma Bruno Morais, cujo trabalho foi orientado pela professora Miram Hermeto de Sá Motta.

Na black music brasileira da década de 1970, predominavam os gêneros da música jovem dos Estados Unidos, sobretudo o soul e o funk, muitas vezes com reelaborações em português. Como atesta a tese, às sonoridades e temáticas das canções se somavam formas de comunicação visual, estilos de vestuário e penteado, sempre com a marca da afirmação da estética do orgulho negro.

Bruno Morais observa que o incentivo à indústria fonográfica propiciou a expansão do setor e a exposição de muitos artistas – como Tim Maia e Luiz Melodia –, e a política de relações exteriores do governo ditatorial deu oportunidade à difusão de canções antirracistas – o sucesso de artistas negros propiciava reforçar o discurso da democracia racial –, em benefício do projeto de aproximação do continente africano, em busca de novos mercados para as exportações brasileiras. Algumas canções enfatizavam a herança africana, como África, África, de Simonal, e Rodésia, de Tim Maia. Ao mesmo tempo, ressalta o historiador, as pessoas negras, que formavam a maior parte das comunidades pobres, pagavam os custos do “milagre” econômico e sentiam o agravamento das desigualdades sociais.

Declínio em contraste com a luta
O último recorte temporal da tese tem início no ano de 1978, que marcou o apogeu da disco music, gênero incorporado por artistas que personificaram a black music nos anos anteriores. “O espaço dos produtores musicais para a experimentação foi reduzido pelo movimento de profissionalização da indústria fonográfica, e o gênero entrou em fase de retraimento”, explica Bruno Morais. Ele ressalva que ainda apareceram nomes importantes como Zezé Motta e Sandra de Sá (a “rainha do soul”), e a black music teve algum eco na produção de Gilberto Gil e Djavan, entre outros. Entre os músicos ditos alternativos, Itamar Assumpção incorporou elementos do gênero. Em todos esses casos, estavam presentes, eventualmente, discursos das linguagens antirracistas.

O declínio da produção fonográfica da black music a partir de 1978 contrasta com o recrudescimento da luta antirracista, de acordo com a tese. “O Movimento Negro ganhava visibilidade em um cenário de intensificação das lutas populares contra a ditadura e de eclosão de novos movimentos sociais”, escreve o pesquisador.

Ainda de acordo com Bruno Morais, com o processo de redemocratização, a partir de 1985, e a promulgação da Constituição de 1988, a luta antirracista ganhou força, “reivindicando um alargamento do conteúdo da democracia a ser instaurada”. Na tese, Bruno afirma ainda que “intelectuais negros buscaram fundamentar uma nova compreensão do termo ‘racismo’, que abarcasse o preconceito e a discriminação racial, seguindo as concepções do Movimento Negro”. Essa ressignificação, segundo ele, foi “central para sustentar a rejeição do mito da ‘democracia racial'. Ao tratar da atuação do Movimento Negro em interação com a Assembleia Constituinte, Bruno destaca aproximações das pautas desse movimento com temas tratados na produção da black music apresentada por ele.  

Na tese, Bruno Vinícius Morais lembra que há várias formas de expressar o antirracismo, que ele chama de linguagens políticas antirracistas. A Linguagem do Orgulho Negro, ele sustenta, pensava a realidade racial brasileira com forte interlocução com os movimentos negros estadunidenses. “A incorporação das sonoridades da black music coexistiu com a ressignificação do termo ‘racismo’, que ganhou o sentido de preconceito e discriminação racial contra as pessoas negras, o que era enfatizado no antirracismo dos EUA”, comenta o pesquisador.

Tese: O swing da cor: a Linguagem Política do Orgulho Negro na black music brasileira (1960-88)
Autor: Bruno Vinícius Leite de Morais
Orientadora: Míriam Hermeto de Sá Motta
Defesa: fevereiro de 2022, no Programa de Pós-graduação em História

(Texto de Itamar Rigueira Jr.)

Assessoria de Imprensa ufmg

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