Solução para condições subumanas no sistema prisional passa por prender menos e soltar mais, defende pesquisadora do Crisp/UFMG

As unidades prisionais brasileiras, historicamente marcadas por corrupção e condições subumanas para os presos, foram palco, no início deste ano, de massacres brutais gerados por conflitos entre organizações criminosas. Segundo a professora Ludmila Ribeiro, pesquisadora do Centro de Referência em Segurança Pública (Crisp), da UFMG, a solução para o sistema penitenciário não é aumentar o número de vagas, como apregoam setores ligados ao assunto, com apoio da opinião pública.

“A prisão aumenta o engajamento no crime. É possível pensar em outras formas de punir, compartilhando essa responsabilidade com a comunidade”, afirma a professora da Fafich, que coordena estudos relacionados ao acesso à justiça e ao sistema penitenciário. Nesta entrevista, Ludmila também aborda os mecanismos que regem a chegada do Primeiro Comando da Capital (PCC) à Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Que aspecto sobressai nos resultados de suas pesquisas?

Fizemos entrevistas em profundidade em diversos tipos de estabelecimento, incluindo a penitenciária Nelson Hungria, de segurança máxima. Ficou evidente o que teóricos chamam de vasos comunicantes, a prisão como algo muito poroso. A prisão como Instituição Total, que separa o indivíduo da sociedade, não existe mais, se é que algum dia existiu. Há um fluxo de informações e de bens diversos oriundo de visitas e dos agentes penitenciários. Duas outras questões apareceram com força nessa pesquisa. A população de ex-profissionais de segurança pública punidos é crescente. E chegou à região metropolitana o Primeiro Comando da Capital, o PCC, que já está se institucionalizando no sul de Minas. Uma prova disso é que há pavilhões cada vez maiores dedicados ao PCC na Nelson Hungria. São três pavilhões e quase mil presos. A estratégia é impedir que o PCC se alastre. Mas, dessa forma, a política pública acaba facilitando que o Comando se estruture como um grupo mais coeso, porque os membros confirmam e reforçam laços de solidariedade.

Imagina-se que, dessa forma, eles lidam com as informações de fora de maneira mais eficiente. Mas não fica mais difícil arregimentar novos membros?

A questão é que vários desses presos que se declaram do PCC na verdade ainda não são. Alguns querem entrar para o grupo. Outros querem se ligar ainda mais ao PCC. Os presos falam da vantagem de estar no PCC como meio de garantir proteção para eles e suas famílias, mas também da perda da autonomia na gestão dos negócios. Nas entrevistas iniciais, mais diretas, identificamos muitos indivíduos que tinham experimentado um namoro com o PCC e decidido não aderir, porque era muito menos lucrativo. O PCC tabela preços e impõe outras obrigações. Aqui em Belo Horizonte, o grupo não entrou com tanta força porque é forte a visão de que ser chefe de grupo significa uma lucratividade maior. Pesa mais a questão da lucratividade que a da proteção. Mas é diferente entre os presos que vieram do sul de Minas. Eles valorizam a proteção e um comércio que é mais pacífico e mais constante, o que pode gerar lucros maiores.

Pertencer ao PCC como a uma família estimula que o indivíduo continue no crime? Como isso se dá?

O PCC traz duas novidades que não são desprezíveis. Ele administra conflitos, e existem muitos dentro da prisão, que podem desaguar em violência. Por exemplo, sobre o que o preso pode ou não fazer em dia de visita, eles têm que respeitar as famílias. Tudo é negociado. Quando alguém descumpre uma negociação, eles têm códigos para convocar reuniões e deliberar. É um sistema de justiça, que combina tipos de desvios e punições. A grande diferença entre o PCC e o sistema de justiça criminal é que nesse último existe muita impunidade. Nossas pesquisas mostram que, no caso de homicídio, por exemplo, menos de dez por cento chegam a algum tipo de responsabilização, e quando acontece, leva mais de oito anos. No PCC, a responsabilização é imediata. Apresentam-se as versões, são feitos os debates e, em seguida, tem-se a aplicação imediata da pena, que tem dimensão pedagógica clara. A segunda novidade trazida pelo PCC é que ele diminui a crueldade. Não há mais tanta crueldade, por exemplo, na matança por disputa de maior lucratividade. Pelo contrário, a morte é episódica, excepcional, só quando efetivamente necessário.

Essa pacificação é constatada dentro e fora do sistema prisional?

Tudo começa dentro do sistema e transborda. O PCC surgiu para reivindicar melhores condições de vida. A ideia é que, se eles se fortalecem, vivem melhor dentro da prisão. Isso começa a funcionar e é levado para as famílias, ganha ramificações. E se convivem presos do PCC e outros que não pertencem ao grupo, há uma tentativa de sobreposição da lógica do PCC sobre as outras lógicas, mas há também disputas e conflitos. O PCC encontra resistência à sua institucionalização, e o sistema penitenciário acaba sendo muito importante, porque os indivíduos estão ali juntos, o tempo inteiro, e nesse processo de interação podem convencer uns aos outros, mas também podem tentar se impor aos outros. Ou seja, há uma disputa dentro do sistema. Por isso, essa ideia da transferência pode parecer boa, mas ela também significa fortalecimento do comando, porque os que se dizem do PCC e os que estão entrando fortalecem a coesão, e esse bloco se ramifica melhor, sem muitas divergências.

Se chega às prisões, o PCC chega a Belo Horizonte e região. Como isso é visto pelo poder público?

Quando pensa em transferência, por exemplo, do sul de Minas para a região metropolitana, o poder público pensa em segregar esses presos. Mas o preso não vai sozinho, a família vai junto. A área de Nova Contagem, onde está localizada a Nelson Hungria, se desenvolveu a reboque da penitenciária. A família quer ficar perto do ente querido, e o indivíduo não sobrevive no sistema penitenciário se não tem alguém próximo. Sabonete, escova de dente, um chinelo, uma comida mais gostosa, tudo isso é a família que provê. Além disso, se o preso entra para o PCC, em tese, sua família vai estar protegida. Quando a família começa a residir perto do sistema penitenciário, vai conviver com outras famílias, e a rede vai aumentando e ficando mais forte. Ou seja, quanto mais se transferem os presos, mais se traz o PCC para a região metropolitana. E a gestão pública não pensa na dinâmica extramuros. Belo Horizonte tem pequenas gangues de dez, doze pessoas, e isso pode mudar. Outra pesquisa do Crisp mostra como o discurso do PCC começou a aparecer de forma muito intensa nas favelas nos últimos dois anos, o que coincide com o aumento dos presos do PCC na Nelson Hungria.

Que outro fator contribui para o fortalecimento do PCC?

Em nossa pesquisa sobre as audiências de custódia em Belo Horizonte, constatamos que, se o indivíduo for apanhado por tráfico de drogas, com ou sem antecedentes criminais e uso de arma, ele tem dez vezes mais chances de ficar preso. Mesmo quando se trata de pequenas quantidades de droga. E ele vai para centros de remanejamento onde há todo tipo de gente, onde ele pode ser aliciado por outros presos para a realização de negócios ilegais. Nesse cenário, é bom lembrar que alguns presos do PCC escondem essa condição para a administração prisional e permanecem na prisão de origem. É uma forma de continuar ali e arregimentar mais gente para a organização. Portanto, não basta prender, é preciso entender de onde vêm os presos. Caso contrário, o Estado facilita o espraiamento desse tipo de organização. O sujeito foi preso vendendo 200 gramas de maconha e, quando sair, vai poder vender muito mais porque se inseriu em uma rede. Ele aumentou os seus contatos, fortificou conexões. Essa prisão excessiva, principalmente por causa do tráfico de drogas, ajuda também substantivamente no crescimento das organizações criminosas, no fortalecimento dos grupos. E não se prendem os homicidas.

Por quê?

Porque não se esclarece o crime. Aparece um corpo, com três tiros na nuca. Em vez de se preservar o corpo, fazer exame de balística etc., a polícia pergunta a todo mundo em volta se alguém viu, se alguém sabe. Isso é tentar reconstituir a história de quem morreu. Ou seja, quem morreu merecia morrer? Os homicídios que são punidos no Brasil são os relacionados a violência doméstica e entre vizinhos, que são fáceis de esclarecer. Os homicídios que não se esclarecem são os ditos “vinculados ao tráfico de drogas”, ainda que não tenham relação. É quase como dizer que esse homicídio não é preciso investigar. Para se aumentar um pouco a taxa de esclarecimento, é preciso investigar de maneira mais científica, buscar menos opiniões sobre a vítima e entender mais sobre a dinâmica do crime. Isso poderia ser melhorado com um setor de perícia mais estruturado e eficiente.

Quais são as origens da rivalidade que resultou nos recentes massacres em penitenciárias no Norte e Nordeste do país?

O delegado Hélio Luz, que foi secretário de Segurança do Rio, diz que se existisse crime organizado, os detentos do sistema penitenciário já teriam dominado todas as estruturas. O que existe é um comércio relativamente organizado em determinadas áreas da cidade. É importante lembrar que as drogas vendidas na favela não são produzidas no Brasil e, por isso, chegam até essas áreas a partir de esquemas que não envolvem os pobres. Para que essa revenda de drogas na favela gere lucro, o comércio é protegido por armas de fogo, o que significa dizer que o tráfico de drogas se comunica diretamente com o tráfico de armas de fogo. Com a arma, se protege o comércio e se resolvem outros conflitos. Quanto mais membros da organização estão nesses locais, mais se garante a lucratividade. Porque você vai ter mercado de armas e de drogas. Então, o que muitas vezes acontece dentro do sistema penitenciário não é apenas o conflito inerente ao sistema, mas o que está fora dele. Em Manaus, estava em jogo quem ocupava determinadas áreas. A questão não foi uma briga dentro da prisão, por desrespeito à família de outro numa visita, nada disso. O problema é o mercado lá fora. A disputa de mercado se concretiza dentro do estabelecimento penitenciário, em duas dimensões: primeiro, a promiscuidade entre agentes e presos, a fronteira é muito fluida entre o lugar de um e o de outro. Segundo, como está todo mundo ali, é muito mais fácil resolver o conflito que tem origem nas ruas.

Há também um caráter simbólico muito forte...

Sim, são sempre mortes muito cruéis, eles tiram o coração, penduram a cabeça, não é só matar, mas matar com requintes de crueldade, mostrando poder. Isso tem um efeito simbólico gigantesco fora da prisão, a organização sai ainda mais poderosa. Ela mata, impõe ordem, é vencedora. E faz mais sentido ainda pertencer a essa organização. São duas dinâmicas que se sobrepõem, a dinâmica de mercado e a de demarcação de territórios, que é, em parte, simbólica.

Com base na teoria, na prática da pesquisa e nos debates, aumentar o número de vagas em penitenciárias tem efeito?

Essa é a pergunta mais fácil. A partir dos anos 1990, houve um crescimento exponencial da população prisional. No início dos anos 2000, Minas Gerais tinha algo em torno de 20 mil presos, e hoje tem quase 70 mil. E explodiram as taxas de crime. Alguma coisa está errada nessa equação. Vamos falar dos homicídios, crime que não depende de comunicação à polícia. O indicador é um pouco mais confiável, porque o sistema de saúde também registra esses crimes. As curvas de homicídios e de presos se encontram e começam a crescer juntas. Então, prender para evitar o crime não está funcionando. Além disso, existe uma distorção muito grande no sistema penitenciário, apesar do discurso de que ele é feito para ressocializar. Não é isso que acontece, na América Latina como um todo. Nada se ensina ao indivíduo. Não há educação, profissionalização, nem a penitenciária industrial. Ora, não há como esse indivíduo voltar melhor para a sociedade. Ele está ali em condições aviltantes, com milhares de outros que praticaram crimes geralmente muito mais graves e com a cabeça vazia, porque ele não tem trabalho. Alguns trabalhos são inúteis, o sujeito não vai sair dali e sustentar sua família costurando bolas. Além disso, existe o preconceito com o ex-presidiário. A prisão acaba aumentando o engajamento no crime, porque a sociedade é extremamente preconceituosa, não contrata quem já passou pela prisão. A prisão acaba sendo um mecanismo de reforço da identidade criminosa. Não funciona mesmo. É possível pensar em outras formas de punir. Na Holanda, se discute justiça restaurativa. O indivíduo é punido com a participação da comunidade, que o absorve. Se ele praticou um roubo porque não tinha o que comer, vai-se pensar por que ele não tinha o que comer e como a família e a vizinhança podem ajudar. É muito mais eficiente que se compartilhe essa responsabilidade.

Mas até que ponto a cadeia é inevitável, mesmo que não para todo mundo?

Um assassino em série tem que ser segregado. A grande questão é que temos uma só forma de punir para todo tipo de crime. E não se pensa em quais são as causas sociais do crime. Sem falar na guerra contra as drogas, que é muito maluca, porque o álcool está aí, com os mesmos efeitos que muitas das drogas. Nossa sociabilidade gira muito mais em torno do álcool, e estudos mostram que a droga faz menos mal que o álcool. Não seria melhor ter um mercado de drogas regulado, como o do álcool, gerando empregos?

As mudanças de partido no poder têm alguma influência no tratamento do problema?

Nem a direita nem a esquerda apresentaram uma proposta séria para lidar com o problema do crime com base em mecanismos outros que não a prisão, como uma política de prevenção. Havia uma ilusão, na área de segurança pública, de que quando a esquerda chegasse ao poder seria diferente. Pelo contrário, manteve-se a lógica punitivista, de aumentar a quantidade de policiais, o número de prisões e soluções do tipo. Pôr mais gente para prender não resolve. Tem que se prevenir, impedir que a pessoa entre no crime. Quanto mais policiais, juízes, promotores, mais se precisa de prisão. É uma equação que não fecha.

E são muito poucas vagas para a quantidade de presos, pensando em condições minimamente dignas.

O estado de Minas Gerais foi um dos que mais criaram unidades prisionais nos últimos anos. A grande maioria dos presos estava em delegacias de polícia. O esforço foi para esvaziar as delegacias, dar aos policiais tempo para investigar, em vez de cuidar de presos. E hoje está tudo novamente superlotado, sendo que as nossas taxas de crime também não foram reduzidas. Construir mais prisões é enxugar gelo, aumentar o círculo vicioso. Há o mito de que muita prisão e muita polícia geram segurança. O que assistimos é o inverso. Precisamos parar de prender. Ou seja, é preciso soltar gente.

Enquanto não se muda a lógica de prender e construir mais prisões, há medidas à vista para acabar com as condições subumanas das unidades?

Há muitos erros, muita gente que está presa e não cometeu crime, além dos casos em que o indivíduo já terminou de cumprir a pena e ainda está preso. Se alguém estivesse acompanhando, talvez ele já estivesse solto há muito tempo. É fundamental que haja um trabalho cuidadoso de revisão contínua dos processos. Isso sem falar nos presos provisórios, sujeitos que estão presos há dez anos e, se algum dia forem condenados, serão soltos porque já cumpriram a pena. Impedir a prisão provisória por pequenos crimes já seria uma medida de desencarceramento.

Para soltar mais, seria preciso contar com uma estrutura de assistência e reinserção, não é isso?

Exatamente. E isso é muito mais barato e mais eficiente do que deixar tanta gente presa, o que acaba fomentando o chamado crime organizado. Uma medida revolucionária de prevenção seria a soltura dos "pequenos criminosos". É preciso investir na soltura. Agora, dizer que vão ser soltas cinco mil pessoas, que deixariam de ser violentadas, corrompidas, instruídas pelo crime não convence a opinião pública, que é muito punitivista. E muitos governantes não compram uma medida assim porque é impopular. Mas prisão é cara, em todos os sentidos: construir, manter, pagar agentes penitenciários, médicos, psicólogos, assistentes sociais. Melhor que prender seria condenar o sujeito a fazer um curso técnico em tempo integral, pagando a ele uma bolsa no mesmo valor que ele custaria para a administração prisional. Em vez de gastar R 3 mil para manter o sujeito no sistema penitenciário, pode-se dar a ele menos que isso para ele se preparar para o trabalho.

Qual o poder da pesquisa acadêmica sobre a política pública?

Se o gestor acredita nela, faz muita diferença. Por exemplo, o Fica Vivo, programa de controle de homicídios em áreas de elevada concentração de vulnerabilidades e mortes violentas, nasceu aqui no Crisp. O piloto deu certo e o Estado absorveu o programa. A pesquisa acadêmica pode transformar completamente a gestão pública. No Brasil, duas coisas atrapalham: a ideia de que é mais importante satisfazer os clamores da opinião pública do que fazer uma gestão racional e uma certa arrogância contra a academia, que analisa o problema de fora, já que os acadêmicos nunca foram policiais, agentes ou funcionários do sistema de justiça criminal. Há uma visão muito negativa de processos de auditoria, controle, monitoramento e avaliação. A avaliação é vista como instrumento de punição. Os gestores da segurança pública têm medo de que se exponham suas fraquezas, eles não nos veem como parceiros, que produzem conhecimento para a melhoria da política pública.

Como é para vocês, pesquisadores, ouvir uma notícia como a de um massacre dentro da prisão?

A nossa revolta é maior, porque sabemos que esse episódio poderia ter sido evitado. Em dezembro, eu comentava com meus colegas que estava prestes a explodir uma rebelião, e eles concordaram que a situação estava muito tensa. Em janeiro, houve motins até na penitenciária feminina de Belo Horizonte. É preciso liberar parte dos presos, deixar a prisão um pouco menos desumana, revisar processos atrasados. Tirando homicídios passionais, todos os outros crimes são passíveis de políticas de prevenção. A aliança da pesquisa acadêmica com o poder público pode ajudar a evitar várias tragédias, desde o caso de Mariana, passando por epidemias como a de Zika, até essas rebeliões sangrentas dentro dos presídios.

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