Tese da UFMG encontra romantismo e brasilidade revolucionários em Maria Bethânia

Pesquisa percorre as quase seis décadas de carreira da intérprete que cantou sertanejos e moradores de favelas e foi monitorada pelos militares

Dos primeiros anos da ditadura militar, conta o doutor em História pela UFMG Marlon de Souza Silva, não se encontram documentos que contenham manifestações da cantora Maria Bethânia abertamente críticas ao regime. Mas, desde 1964, ano em que apareceu na Bahia com o espetáculo Mora na filosofia, Bethânia teve postura de contestação contundente em sua atuação artística, que lhe valeu, ao longo de vários anos, a vigilância por parte do governo militar.

“Bethânia chegou a ser apelidada, em uma matéria de jornal, de ‘protesto vivo’, porque sua voz e sua imagem foram usados, no início da carreira, como formas de contestação à situação política e social do Brasil”, afirma o historiador, que em 2022 defendeu, na pós-graduação em História da UFMG, a tese O canto de revolta de uma águia nordestina: romantismo e brasilidade revolucionários em Maria Bethânia (1964-2021).

A postura de protesto tem um de seus momentos mais fortes na canção Carcará, de João do Vale (Carcará/Pega, mata e come/ Carcará/ Não vai morrer de fome/ Carcará/ Mais coragem do que homem), que Bethânia interpretou no show Opinião, em 1965. Marlon Silva lembra que se costuma associar a obra de Maria Bethânia ao romantismo amoroso, sobretudo devido ao sucesso do disco Álibi, de 1978, que reúne canções como Negue e Explode coração. “Mas está claro que ela é voz também do romantismo revolucionário. Em Carcará, o sertanejo nordestino aparece como agente de transformação. Em Mora na filosofia, o roteiro e o cenário remetiam ao morro carioca, e havia ali uma discussão política e social”, afirma o pesquisador. Bethânia lançou 61 álbuns, mais os compactos e projetos especiais.

Em seu livro Em busca do povo brasileiro, lançado em 2000, o sociólogo e professor da Unicamp Marcelo Ridenti cunhou os termos “romantismo revolucionário” e “brasilidade revolucionária”. “Para o autor, o triunfo do capitalismo estaria relacionado à perda da identidade nacional, principalmente nos anos 1960 e 70, e a revolução social passaria pelo homem simples. Quando aborda essa revolução nas artes, Ridenti cita Chico Buarque, Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Hélio Oiticica, o Cinema Novo, mas não inclui Bethânia. E acho que deveria”, observa Marlon, que foi orientado em sua pesquisa pela professora Heloísa Starling.

Canção, teatro e literatura

Em sua tese, Marlon de Souza Silva mostra como a produção de Bethânia, no início da carreira, contribuiu para o debate sobre o nacional e o popular. Segundo ele, a cantora teve papel importante também na medida em que consolidou uma nova estética – que marcou o espetáculo Rosa dos ventos, de 1971 – materializada na mescla de canção, teatro e literatura.

Quando analisa a obra da cantora entre 1964 e 1984, o pesquisador a trata como “artista da revolução”, questionadora da ordem vigente e muito associada à ideia de liberdade. Por isso, lembra Marlon, sua voz foi utilizada como bandeira contra o regime. Bethânia foi tema de dossiês da polícia política do regime, como comprovam documentos da censura e do SNI, o Serviço Nacional de Informações, a que ele teve acesso.

Uma das abordagens centrais da tese de Marlon Silva é aquela em que ele se aprofunda na questão da brasilidade revolucionária em Maria Bethânia. “Como apresentando por Ridenti, o conceito engloba uma visão de mundo romântica, e a construção da brasilidade é vinculada a partidos de esquerda”, explica. Como o autor escreve em seu trabalho, “da mesma forma que o romantismo revolucionário, a valorização do povo [na brasilidade revolucionária] implicava o paradoxo de buscar no passado as bases para a construção de um futuro possível, baseado na revolução”.

Nos anos de passagem da década de 1980 para a de 90, salienta Marlon, Bethânia foi tomada por certa revolta e melancolia, em razão do processo complicado de transição democrática e do caos econômico, político e social no Brasil. Ainda assim, ao longo da década de 1990 ela manifestou indignação, e sua arte era solidária com os excluídos, como os trabalhadores rurais sem-terra. No disco Brasileirinho, de 2003, ela converte seu desencantamento na expressão de sua visão de um país possível. A partir daí, ela cantou os elementos constitutivos da brasilidade.

“Nos últimos 20 anos, Bethânia denunciou racismo, os preconceitos sociais e de gênero, as mazelas, a desigualdade, postura típica de uma estrutura de sentimento característica de uma brasilidade revolucionária e mestiça”, continua o texto em que Marlon conclui a tese. “Desde 1964, Maria Bethânia traduz o seu país e nos obriga a pensar em nossas contradições como nação. Se os artistas estão no mundo para cumprir a função revolucionária da arte, ela o faz com perfeição.”

Tese: O canto de revolta de uma águia nordestina: romantismo e brasilidade revolucionários em Maria Bethânia (1964-2021)
Autor: Marlon de Souza Silva
Orientadora: Heloísa Maria Murgel Starling
Defesa: junho de 2022, no Programa de Pós-graduação em História

Texto de Itamar Rigueira Jr.

Fonte

Assessoria de Imprensa UFMG