História do povoamento das Américas é detalhada por meio do cromossomo Y
Artigo publicado por pesquisadores do ICB revela nova datação e cenário da ocupação pré-colombiana do continente
É crescente o consenso entre pesquisadores de que a América foi um dos últimos continentes habitados por seres humanos, entre 15 e 25 mil anos atrás. Datas e modelos de ocupação mais precisos aparecem com a publicação, nesta quinta-feira, 20, na revista Current Biology, do artigo Y Chromosome Sequences Reveal a Short Beringian Standstill, Rapid Expansion, and Early Population Structure of Native American Founders, assinado pelo mestrando em Genética do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG (ICB) Thomaz Pinotti e por seu orientador, professor Fabrício Santos.
A análise genômica do cromossomo Y, conhecido por ser determinante do sexo masculino em humanos, tornou possível estimar a data-limite da separação entre nativos americanos e siberianos em 19.500 anos. Outra importante contribuição da pesquisa foi a apresentação de um modelo de ocupação das Américas pelos primeiros exploradores, com a identificação das rotas de entrada, da rápida expansão populacional e povoamento estruturado regionalmente na América do Sul.
Thomaz Pinotti e colaboradores do Brasil, Reino Unido, Alemanha, Peru, Equador e Bolívia, liderados pelo Laboratório de Biodiversidade e Evolução Molecular do ICB, analisaram as sequências de 222 cromossomos Y, de DNA antigo e moderno, da literatura e 24 sequências inéditas de cromossomo Y. Os dados foram analisados por Thomaz em parceria com o Wellcome Sanger Institute de Cambridge, um dos principais centros genômicos da Europa.
“Com o acréscimo de 24 cromossomos Y representativos da América do Sul, obtivemos um conjunto de dados com maior resolução, o que possibilitou propor um modelo muito detalhado de ocupação das Américas. Esse modelo envolve uma ocupação rápida até a América do Sul, acompanhada de uma estruturação geográfica surpreendente”, comemora Fabrício Santos.
O professor explica que os próprios dados do cromossomo Y geram os modelos, dispensando análises de modelos virtuais em cenários computacionais e testes estatísticos. Resta ao pesquisador fazer a interpretação desses dados e compará-los com arqueologia, climatologia, antropologia física e ecologia humana. “É um projeto antigo, que gostaríamos de ter realizado no âmbito do Projeto Genográfico e que agora se tornou possível com o trabalho do Thomaz e com a metodologia de análise genômica, que foi muito aperfeiçoada nos últimos cinco anos”, afirma.
Cromossomo Y preciso
O foco no cromossomo Y, segundo Thomaz Pinotti, se justifica por algumas características peculiares, como sua exclusividade em homens e o fato de ser transmitido de pai para filho. Além disso, diz o mestrando, “é menos embaralhado que os outros e sofre menos interferências ao longo do tempo. Por isso, é a parte do genoma humano mais sensível a mudanças demográficas e eventos migratórios, além de ser a que melhor se correlaciona com fatores culturais e linguísticos”, acrescenta o mestrando.
Thomaz Pinotti explica que sua pesquisa buscou entender melhor o caminho dos primeiros ocupantes humanos da América desde a Ásia. Há evidências de que essa população não veio diretamente, mas teria permanecido na Beríngia (ao redor do atual Estreito de Bering), uma “ponte de terra” que existiu entre o nordeste da Ásia e o Alasca. Como essa porção de terra encontra-se hoje debaixo d’água, há poucos vestígios arqueológicos para calibrar o tempo de ocupação. “Um debate antigo tem relação com quanto tempo essa população ficou ali, até se deslocar para as Américas. Os dados existentes não ofereciam um período preciso, mas com a análise do cromossomo Y, chegamos ao limite de 4.600 anos”, revela o estudante. “Quando a gente consegue traçar uma data-limite é muito bom, porque ajuda a refinar as hipóteses e contribui para os estudos interdisciplinares”, acrescenta.
Segundo Pinotti, há várias formas de calcular essa data, lançando mão de diferentes linhas de evidências, como as utilizadas pelos arqueólogos, linguistas ou até mesmo pela genética. Mas foi a “acurácia fornecida pelo cromossomo Y” que gerou maior exatidão, com base na estimativa genética sobre a data da última separação, que foi estimada comparando-se cromossomos Y americanos e siberianos.
O professor Fabrício Santos explica que, no período Pleistoceno, quando o nível do mar nessa região estava 120 metros mais baixo e se formava a Beríngia entre Ásia e Alasca, as pessoas e outros animais, como mamutes, mastodontes e bisões, transitavam de um lado para o outro. Com o derretimento das geleiras e a inundação dessa ponte de terra, a população foi dividida entre os dois continentes, originando, de um lado, todas as populações indígenas das Américas, mas também deixando um rastro genético na Ásia em forma de algumas linhagens muito raras – essa é outra conclusão importante da pesquisa. “Desse povoamento inicial, nós traçamos a ocupação até a América do Sul, propondo o modelo de uma ocupação que engloba duas rotas anacrônicas, uma inicial e mais antiga pela costa do Pacífico e outra com o derretimento das geleiras no final do Pleistoceno”, acrescenta o pesquisador do ICB.
Ele conta que registros arqueológicos dão indícios de que esta rota costeira facilitou a chegada dos primeiros exploradores, guiados pela fartura de alimentos oferecida pelo Oceano Pacífico. “Há estudos que indicam que esse deslocamento levou apenas dois mil anos, e os sítios arqueológicos de 14 mil anos mostram que a ocupação e a expansão foram tão rápidas que deixaram rastros genéticos na principal linhagem que se expandiu para mais de 85% dos povos nativos indígenas. Nossa publicação de 1995 na Nature Genetics já sugeria essa linhagem fundadora principal das Américas, mas agora, com os dados em alta resolução, é possível contarmos com detalhes essa história”, observa.
Essa “rápida expansão populacional quase sem precedentes na história humana”, segundo os pesquisadores, é demonstrada pelo processo da ocupação americana, marcada por grande sucesso dos novos habitantes em sobreviver e deixar descendentes. “Essas populações indígenas têm raízes muito profundas nos lugares onde estão localizadas na América do Sul, onde visualizamos que os dados genéticos apresentam grande estruturação geográfica, isto é, parentes próximos tendem a estar mais próximos geograficamente.”
O estudo que acaba de ser publicado confirma e aumenta a resolução de um modelo de ocupação das Américas publicado recentemente pelo mesmo grupo da UFMG na revista Science, que utilizou genomas completos de DNA antigo extraído de esqueletos escavados em diversos sítios arqueológicos da América do Sul e do Norte. Confira matéria sobre esse estudo no Portal UFMG.